A ministra da Saúde, Nísia Trindade, e a sua equipe vão precisar trocar o pneu do carro andando. Uma expressão usada pelos velhos repórteres nas redações para descrever uma emergência. Vou descrever a emergência. Existe, no Brasil, um enorme contingente de pessoas que ficaram com sérios problemas emocionais por terem visto seus parentes, vizinhos e amigos agonizarem até a morte nas UTIs dos hospitais durante a pandemia de Covid-19. Enquanto acompanhavam nos noticiários as piadas macabras sobre a doença feitas pelo então presidente da República Jair Bolsonaro (PL) e o seu círculo íntimo de líderes, no qual se destacava o general da ativa (na época) do Exército Eduardo Pazuello, que ocupava o cargo de ministro da Saúde. Toda essa história está contada nas 1,3 mil páginas do relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado sobre a Covid-19 (CPI da Covid), que colocou as digitais do governo do ex-presidente nas 700 mil mortes de brasileiros pelo vírus. No auge da pandemia, meados do ano de 2020, houve uma elevação da taxa de suicídios no Brasil – há matérias na internet. Na ocasião publiquei o post Por que suicídios como o da dentista de Tupanciretã viraram tabu na imprensa.
Os parentes, amigos e vizinhos das vítimas da Covid são pessoas com os nervos à flor da pele. A qualquer notícia sobre vacinas, pensam o pior. No meio do ano passado começaram a ser publicadas notícias sobre falta de vacinas para crianças (6 a 11 anos) contra a Covid. O assunto acabou se perdendo no meio do noticiário, que estava focado na disputa eleitoral. Passada a eleição, assumiu o novo presidente, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e aqui e ali nos noticiários começou a pipocar novamente a história das vacinas para as crianças. Ethel Maciel, secretária da Vigilância do Ministério da Saúde, disse que o governo está acertando com a Pfizer o envio de 3,2 milhões de doses da vacina para as crianças. Disse também que existem no Brasil mais de 100 milhões de pessoas com as doses atrasadas da vacina de reforço contra a Covid. O atraso não é só desse tipo de vacina. A cobertura vacinal dos brasileiros está cheia de furos, especialmente do público infantil. Em parte, devido a uma campanha mundial contra as vacinas que já existia muito antes de Bolsonaro assumir o seu mandato, em 2019. O que aconteceu é que ele fez do negacionismo em relação às vacinas uma política de governo. Isso ajudou a bagunçar a vacinação feita pelo Sistema Único de Saúde (SUS), que é representada pela figura do Zé Gotinha. Lembro que um dos motivos da derrota na reeleição de Bolsonaro foi justamente o seu negacionismo em relação às vacinas. E um dos motivos da vitória de Lula foi o seu respeito às vacinas.
Dito isso. Lembro aos meus colegas jornalistas que está na hora de começar a cobrar do presidente Lula um plano para revitalizar o respeito às vacinas no Brasil. Temos noticiado, aqui e ali, ideias do novo governo sobre o assunto. Mas são assuntos noticiados no pé da página. Os lugares nobres dos noticiários são ocupados pelas articulações políticas dos novos ministros, assuntos econômicos e de segurança pública. Claro, são todos assuntos importantíssimos. Mas temos que encontrar um lugar de destaque para colocar a questão das vacinas nos noticiários Por quê? É fundamental para o bem-estar dos brasileiros que o sistema de vacinação do país, que já foi um dos melhores do mundo, volte a funcionar. Temos que começar a informar a população detalhes de como tudo funciona, por exemplo. Como são feitos os controles dos estoques dos imunizantes. Lembro que há dois anos noticiamos que vacinas seriam descartadas por estarem vencidas. Defendo que, quanto mais informações a população tiver a respeito do funcionamento do sistema das vacinas, mais ela se sentirá comprometida em fazer a sua parte. O atual governo já deveria ter gente trabalhando na reconstrução da imagem das vacinas. Não vai ser um trabalho fácil. Mas é tão necessário como as questões econômicas para recolocar o país nos trilhos. No final dos anos 90 estive em Angola, na África, fazendo reportagens sobre a Guerra Civil. À noite, em um boteco perto do hotel, em Luanda, a capital do país, participava de conversas com jornalistas de vários cantos do mundo e um dos assuntos era as vacinas. Havia um jornalista francês, veterano na cobertura de conflitos armados na África, que falou que os africanos morriam de fome, violência e doenças que já tinham sido erradicadas pelas vacinas em outras partes do mundo. Por conta de ter focado a minha profissão na cobertura de conflitos, estive nos mais distantes rincões do Brasil, como no interior dos estados do Nordeste. Vi muita miséria, fome e gente desesperada. Mas sempre tinha um postinho de saúde por perto. Lembro que certa vez até fiz uma matéria sobre um destes postinhos perdidos no interior do Ceará.
Quando comecei na profissão de repórter era comum escrever que nas pequenas cidades espalhadas pelo interior do Brasil sempre havia a praça e, ao redor dela, a prefeitura e a igreja. A Constituição de 1988 criou o SUS, e o postinho de saúde tornou-se um referencial nos mais distantes rincões, somando-se aos prédios da prefeitura e da igreja ao redor da praça. Para arrematar a nossa conversa. Já é conhecimento geral que os atuais dirigentes do país são defensores das vacinas. Temos que começar a perguntar como pretendem reverter o quadro perante a opinião pública, que foi bombardeada nos últimos quatro anos com fogo pesado contra os imunizantes. Está na hora de chamar o Zé Gotinha para a luta.
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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.