A tentativa de resgatar nosso débil sentimento nacionalista parece sempre resvalar no grotesco. Agora chegou a vez do meio científico dar sua contribuição ao mundo do marketing político. O oráculo destes novos tempos, tão consultado pela classe política em Brasília, apontou o anúncio da ida do astronauta brasileiro, tenente Marcos Pontes, ao espaço como sinal de novos tempos. Mas esse sinal dos deuses também é em nada recente.
A negociação com a academia de ciência espacial da Rússia, a Roskosmos, vem se arrastando há vários anos. A alternativa russa sempre foi uma carta na manga do Ministério da Ciência e Tecnologia, que passou a ser usada no momento em que o governo brasileiro passou a merecer descrédito total da Nasa (Administração Nacional de Aeronáutica e Espaço) dos Estados Unidos. Muito devido ao descaso em relação aos acordos firmados com o consórcio da Estação Espacial Internacional. Afinal, a inclusão da figura do astronauta brasileiro era conseqüência deste trato.
O primeiro ministro de C&T do governo Lula, Roberto Amaral, deu os sinais de que a política científica e tecnológica do país seguiria os caminhos ditados pelo oráculo marqueteiro. Amaral se encheu de vigor para defender a premência de o Brasil ter sua bomba atômica e a urgência de mandar nosso recém-diplomado astronauta ao espaço. O anacronismo do ministro só poderia remeter a duas alternativas: ou ele ainda não tinha sido informado sobre o fim da Guerra Fria ou acabava de se acomodar no ministério alguém sem qualquer afinidade com a área.
Serventia única
Logo ficou evidente que os ministérios da Defesa e da C&T teriam sérias dificuldades de relacionamento. O titular da pasta da Defesa, José Viegas, contornou a repercussão avassaladora da bomba atômica, mas nada poderia fazer no caso do astronauta. O oráculo mostrava ser esse o rumo a ser dado. Então foram feitas cobranças indignadas à direção da Nasa sobre a ausência do brasileiro numa das missões ao espaço. Tudo recheado por discursos nacionalistas evocando a grandeza nacional.
No setor espacial, o Comando da Aeronáutica é o responsável pelo lançador de satélites (foguete) do Programa Espacial Brasileiro. Já a carga útil, ou seja, o satélite produzido pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), fica sob custódia do Ministério da Ciência e Tecnologia. Como nunca houve vontade e nem coragem política suficiente para unificar esse processo, fórmulas paliativas foram sendo adotadas ao longo dos anos.
Neste cenário surgiu então a questionada Agência Espacial Brasileira (AEB), que sequer encontrou posição ou função no contexto governamental. Essa andarilha desorientada e quase incômoda, que ora vagava pela Secretaria de Assuntos Estratégicos ora estava na pasta de Ciência e Tecnologia, teve serventia única no mais grave acidente do desgastado Programa Espacial Brasileiro, em agosto de 2003.
Aos lobos vorazes
Dirigida então pelo bem-intencionado Luiz Bevilacqua, conhecedor do setor espacial, a AEB ensaiava alguns passos próprios, como descentralizar as atividades espaciais, concentradas no eixo Rio-São Paulo, criando núcleos de pesquisa em vários pontos do Brasil. O astronauta Marcos Pontes, até então garoto-propaganda dos programas espaciais brasileiro e americano, seria peça-chave neste processo.
Mas o presidente da AEB falhou em algo primordial. Não era político e nunca manifestou suas ambições neste sentido. Numa comparação, ao meu entender justa, ele era o cordeiro preparado para o sacrifício. Manso e mantido inocentemente para o abate em caso de necessidade.
Isso ficou mais do que comprovado em 22 de agosto de 2003, na terrível explosão do Veículo Lançador de Satélite (VLS), que incinerou toda a equipe do projeto. E mostrou ao Brasil, com sua carga dramática, algo além da fragilidade do foguete: o nível de descaso e amadorismo que envolvia o projeto, tocado sem aporte de recursos de sucessivos governos. Mais que depressa, os ministros da Defesa e de C&T se aliaram para apresentar qual seria o ‘sacrifício’.
Bevilacqua foi lançado aos lobos vorazes, trucidado de maneira cruel por uma matilha de chacais sedentos por culpados e por personificar em alguém toda a falta de comprometimento de sucessivos governos federais com o programa espacial.
Grande jogada
Como em grande parte dos casos de displicência, a imprensa deixou-se guiar pelo oficialismo e mostrou seu poder de criar e recriar novos contextos e entendimentos. Rapidamente devoramos o cordeiro e avançamos para a glorificação dos mortos, transformando em mártires as vítimas de uma tragédia anunciada. Como se houvesse ali uma vertente ideológica que transformasse esses funcionários do Centro Técnico Aeroespacial (CTA) em pessoas que morreram patrioticamente pela glória da nação.
Tanto no caso da explosão do VLS como agora, em que se festeja a possibilidade de um brasileiro ir literalmente para o espaço, a imprensa não passa apenas de instrumento de propaganda. E pior, da mais ordinária possível. Veremos dentro de poucos meses o astronauta nascido em Bauru alçar o status de herói nacional e daremos espaços generosos no noticiário aos políticos que possibilitaram esse acontecimento. Funcionará a velha fórmula que abomina a reflexão ou o aprofundamento do assunto.
O setor científico será enfim observado, mas sem nada que lembre sua crise ou seu sucateamento. Muito menos algo que justifique qualquer pessimismo ligado aos rumos da ciência no país. Pois nossos mortos são mártires e agora alcançamos a condição de criar heróis. Mesmo que tudo isso seja apenas uma grande jogada de marketing para disfarçar o atoleiro em que nos encontramos. E que o jornalismo seja – servilmente – transformado em instrumento de propaganda política. Então poderemos festejar, no auge da hipocrisia, o orgulho de sermos brasileiros.
******
Jornalista pós-graduado em jornalismo científico