‘Brasileiros tiram vantagens dos índios.’ (Policial francês da fronteira com o Brasil)
Na atividade jornalística, muitas vezes se diz muito mais pelo que se oculta do que pelo que é mostrado, principalmente quando se confunde reportagem séria com matéria paga. Embora não se possa exigir de um repórter que seja totalmente imparcial, é óbvio que algumas regras básicas do ofício do jornalista deveriam sempre permear a atividade dos profissionais da imprensa. Uma delas é a necessidade de se procurar entender um fato sob um prisma o mais amplo possível – e de se ouvir o maior e mais variado número de pessoas e instituições envolvidas. Caso contrário, não se estará fazendo jornalismo, mas ideologia ou, escancarando logo, pura campanha publicitária.
Este tipo de propaganda ideológica, isto é, a que vende idéias e não produtos, é feita de modo muito sutil e, por isso, é muito perigosa. Raramente é identificada como propaganda pelos telespectadores. As mensagens apresentam uma versão da realidade sempre fragmentada e parcial, menosprezando-se o todo e fazendo a população crer numa pretensa neutralidade na sua apresentação. Isso se dá tanto em obras de ficção como em noticiários, entrevistas e documentários. O que na maioria das vezes não percebemos é que há sempre uma seleção prévia de aspectos do que é tratado, numa interpretação dessa realidade a partir de um ponto de vista que serve a determinados interesses. As informações, assim, são fragmentadas, retiradas do seu contexto histórico e social.
Foi o que se verificou no Globo Repórter da sexta-feira (12/2), que tratou do Parque Nacional das Montanhas do Tumucumaque, uma área extremamente delicada na tríplice fronteira entre o Brasil, a Guiana Francesa e o Suriname. O programa, coincidentemente apresentado dias antes da entrada em vigor do Protocolo de Kyoto, e tentando oxigenar os lobbies ambientalistas, tratou o assunto de forma parcial e limitada, mostrando a expedição que há dias está trabalhando no Amapá apenas como uma atividade científica, aparentemente neutra e sem implicações geopolíticas e institucionais mais sérias.
Abstraindo quase por completo o aspecto humano dos municípios do entorno do parque, privilegiou uma análise malthusiana com foco apenas nos detalhes científicos pouco interessantes e nas imagens idílicas da flora e da fauna da região. Não abordou, por exemplo, como e por que o parque, do tamanho da Bélgica, foi criado no governo Fernando Henrique Cardoso sob pressões das ONGs ambientalistas internacionais, justamente quando tínhamos um governo fragilizado pela dependência externa e totalmente monitorado por entidades internacionais multilaterais atreladas ao sistema financeiro internacional.
Comparação forçada
Não mostrou ainda a realidade populacional e socioeconômica mais ampla do Amapá, hoje, com o maior índice de migração do país, sem grandes alternativas econômicas, mas que possui mais de 90% de seu território congelado por parques nacionais e estaduais voltados para a preservação ambiental ou por reservas indígenas. A questão das compensações prometidas ao Amapá – mas jamais cumpridas –, para que este estado se tornasse um imenso zoológico para inglês ver, também não foi abordada.
Não explicou o Globo Repórter, por outro lado, quais os interesses – e quais as bases políticas e ideológicas – da ONG estrangeira Conservação Internacional na região, citada apenas como a ‘bondosa’ financiadora da expedição, ao lado do Ibama. Ao Exército, financiado por nossos impostos, tradicional e importante elemento de apoio às populações locais da área de fronteira, restou apenas o papel de caroneiro, embora todas as dádivas tenham recaído para a ONG estrangeira. Muito menos se esclareceu se há ou não iniciativas do Estado brasileiro – ou de políticos do Amapá – que possam servir de alternativas reais aos destinos do parque e que viabilizem a presença do Estado na região.
Pelo contrário, destacando justamente a omissão do Estado brasileiro, a todo o momento a matéria forçou uma comparação curiosa entre a situação dos pobres indígenas e caboclos do lado brasileiro com a condição privilegiada dos seus similares do lado francês, deixando bem claro que, se heróis brasileiros, como Cabralzinho e Rio Branco, não tivessem teimado em preservar aquele esplêndido recanto para os brasileiros, a situação dos caboclos tucujús estaria muito melhor. E é aí que a coisa pega, pois ficou muito claro que a reportagem tentava demonstrar que nada que vem do Brasil, em termos de preservação e desenvolvimento para a região, presta.
Novas capitanias
Não foi por outro motivo que, desconsiderando toda e qualquer regra do bom jornalismo, omitiu esforços importantes como o do senador eleito pelo Amapá José Sarney, que no ano passado enviou o Plano de Desenvolvimento Regional dos Municípios do Entorno do Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque. O projeto abrange os municípios de Calçoene, Laranjal do Jarí, Oiapoque, Pedra Branca do Amapari e Serra do Navio, mas terá efeitos benéficos para todo o estado e poderá servir de experiência para que se elabore, finalmente, um Projeto Nacional de Desenvolvimento Regional, principalmente para as áreas de preservação e as áreas indígenas, hoje tão conturbadas por conflitos.
Os programas e projetos previstos no projeto – em avaliação na Comissão de Constituição e Justiça do Senado – priorizarão áreas referentes aos recursos hídricos, turismo, meio ambiente, ciência e tecnologia, educação, sistemas de transportes e infra-estrutura básica. Serão financiados com recursos de natureza orçamentária e por operações de crédito internas e externas, geridos por um conselho deliberativo. Este seria presidido pelo governador do Estado e integrado por representantes dos órgãos federais, estaduais e municipais envolvidos – e da sociedade civil –, devendo ser ouvido na elaboração e gestão do Plano de Manejo do Parque. Nada disso foi mostrado.
Sarney deveria ter sido ouvido também, porque vem fazendo pronunciamentos constantes sobre outro aspecto que não foi tratado na reportagem da Globo: a delicada questão fundiária no Amapá. Explica-se: a falta de regulamentação fundiária no estado está diretamente associada à questão ambientalista e à atuação das ONGS internacionais – e de entidades multilaterais –, que nos impõem políticas restritivas ao desenvolvimento. Isto porque a política ambiental estrangeira imposta ao Brasil, implementada pela ministra Marina Silva, tem um aspecto básico que, se realmente adotado, representará a volta ao antigo sistema de capitanias hereditárias do período colonial (1500-1815), quando as terras pertenciam ao Estado, mas o usufruto cabia aos donatários. Só que, agora, tragicamente, em vez de donatários brasileiros e/ou portugueses estará sob a tutela de mercenários e biopiratas de todo o mundo, sob a justificativa do que chamam ‘politicamente correto’.
Propaganda deslavada
Assim, as capitanias ‘hereditárias’ atuais não serão mais hereditárias, mas, em versão capitalista pós-moderna, com a atual política fundiária, estarão submetidas aos donos do dinheiro e serão voltadas não a formar o território nacional, como outrora, mas a esfacelá-lo e distribuí-lo aos abutres internacionais.
Em outras palavras, o Plano Nacional de Florestas, idealizado, concebido e imposto pelas ONGs internacionais (entenda-se: pelas entidades controladas pela plutocracia financeira internacional e controladoras do Orçamento brasileiro, como a tal Conservação Internacional que financiou a expedição ao Tumucumaque) é um programa que doa áreas públicas brasileiras, prioritariamente, a empresas privadas estrangeiras – ou ONGs controladas por estas –, em detrimento (e utilizando-se da mão-de-obra) das comunidades caboclas amazônidas.
Enfim, a reportagem do Globo Repórter, infelizmente, procurou fazer não jornalismo, mas propaganda deslavada, estimulando a idéia nefasta de que nós, brasileiros, não sabemos cuidar do que é nosso. O que não é verdade. É a velha e perigosa máxima que diz que ‘santo de casa não faz milagre’. Conclusão lógica: como não se pode acreditar que o repórter Ernesto Paglia seja incompetente, só podemos lamentar que a Rede Globo de Televisão, menosprezando os esforços de políticos ante as questões ambientais e supervalorizando as ações deletérias de entidades estrangeiras vinculadas à plutocracia internacional, está em franca campanha pela revitalização da idéia absurda da internacionalização da Amazônia.
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Professor de História em Brasília