Com um sistema de comunicação planetário funcionando em tempo quase real, acontecimentos que há bem pouco tempo pareciam restritos à ficção integram a realidade mais cotidiana. Os efeitos disso não são poucos nem simples – e certamente exigirão um bom tempo de investigações para serem minimamente conhecidos.
Nem mesmo Arthur Charles Clarke (1917-), o mago da ficção científica que em 1946 previu o uso de satélites artificiais como plataforma de um sistema de comunicação global, foi tão longe em suas previsões. Ao menos em relação ao impacto desestruturador que viaja no rastro de tamanha quantidade de informação, incapaz de ser processada nas 24 horas do dia de cada um dos mais de 6 bilhões de moradores deste mundo.
Claro que nem todos estão conectados virtualmente, plugados nas redes de TV por assinatura. Mas também os desconectados, a exemplo do que aconteceu com o sismo produzido pela revolução copernicana, sentem os efeitos de uma nova era.
Rios de tinta e montanhas de papel foram gastos no anúncio de um tempo de facilidades trazido pela tecnologia que se reproduz como coelhos. Das facas elétricas, que agora tendem aos museus de excentricidades, aos telefones celulares (inspirados nos comunicadores de Jornada nas Estrelas) que também podem fotografar e, com isso, traduzem com metáfora sutil a completa banalização do real.
O conceito de lugar tende à completa diluição.
A tecnologia mantém sua reprodução descontrolada e as estatísticas sugerem que ao longo dos últimos 20 anos os quadros de enfermidades mentais podem ter triplicado em todo o mundo. As pessoas estão mais vulneráveis ou os levantamentos passaram a ser mais criteriosos? Rigor à parte, são cada vez mais numerosas as manifestações conhecidas como Síndrome do Pânico, quadros de ansiedades que reduzem suas vítimas à condição de bolhas de sabão prestes a desaparecer num ‘ploc’ instantâneo.
Para psiquiatras e psicanalistas não dependentes da exclusividade química como solução terapêutica, experiências desse tipo sugerem o encontro com o vazio, a contemplação infinita do nada. Podemos estar mais conectados que nunca, mas poucas vezes estivemos tão solitários e tristes, com o sentimento de impotência mais avassalador.
Metáforas danosas
O noticiário crescente envolvendo a destruição provocada pelo furacão Katrina no Sudeste dos Estados Unidos certamente é uma demonstração desse desespero. Hordas de salteadores, estupradores e bandidos de todas as hierarquias seguiram no rastro de destruição do furacão trocando tiros com forças de segurança. E, no momento em que a edição deste Observatório subia à web, ainda longe de serem contidos pelas normas sociais.
De alguma maneira, no país tido como mais poderoso do planeta, retornamos às normas da Idade Média, quando as viagens, ao menos aquelas que não dispunham de suporte militar, eram operações de alto risco.
E neste contexto aparece um questionamento sintomático: por que não houve uma reação de comoção mundial por parte das pessoas – não de instituições formais – relacionada à destruição que atingiu os estados de Louisiana e Mississippi, no Sudeste dos EUA, com um número de mortos que pode chegar a milhares? Os jornais brasileiros não fizeram essa pergunta.
Os jornais brasileiros – desde que yuppies com suas roupinhas bem cortadas e o desejo mórbido de ascensão rápida substituíram jornalistas com algum senso de humanidade nos cargos de direção – nunca mais desceram fundo em qualquer questão relevante. Não fazem isso por uma questão de princípio.
Os yuppies mesmo são a expressão da futilidade e insensibilidade que tomou forma com o neoliberalismo. Foram esses caras que incensaram Francis Fukuyama, quando, há mais de uma década, ele anunciou um processo que chamou de ‘fim da história’. O tal ‘fim da história’ trouxe, entre outras metáforas, a eleição de George W. Bush e isto nos leva de volta à catástrofe do Katrina.
Se os jornais brasileiros não fizeram essa pergunta envolvendo um descaso com a sorte dos náufragos da costa Sudeste, parte da imprensa mundial refletiu sobre isso.
Pedido de ajuda
Jody Biehl, do Spiegel Online, na quinta-feira (1º/9), argumentou que mesmo a Cruz Vermelha Internacional, com representações na Alemanha, França e Inglaterra ignorava a tragédia deixada pelo Katrina. Para Biehl, o problema, neste caso, não envolve ajuda material, necessariamente (o que, no domingo, finalmente os Estados Unidos solicitaram à Europa), mas solidariedade humana frente à tragédia e à morte.
No mesmo dia, Joern Ehlers, da organização ambientalista WWF, expressava pelo The Guardian, inglês, o temor de que a passividade da população mundial – ao contrário do que ocorreu com o sismo que varreu o Sudeste da Ásia em dezembro passado – possa traduzir a sensação de que tormentas como o Katrina estejam associadas às mudanças climáticas globais. Neste caso, os Estados Unidos estariam pagando o preço de sua própria arrogância por se recusarem a controlar as emissões de dióxido de carbono, como os maiores consumidores mundial de energia.
A rede de TV al-Jazira – já acusada por George W. Bush de ser porta-voz de Osama bin Laden – emitiu opinião parecida ao dizer que se a opinião pública entender que o furacão resultou de efeitos da mudança climática global, então a tragédia não seria interpretada como desastre natural.
Claro que tufões, furacões e tornados – que com alguma freqüência produzem perdas e mortes também no Brasil – são anteriores à Revolução Industrial, ocorrência por trás da mudança climática global pelo crescimento das emissões de gases do efeito-estufa. Mas também é verdade que as modelagens elaboradas por climatologistas com uso de supercomputadores sugerem que a mudança climática tende a aumentar a freqüência e intensidade desses fenômenos que, ao menos até agora, continuam reconhecidos como ‘desastres naturais’.
Evidente que o fanatismo religioso enxerga na catástrofe sinais da ira divina, como ocorre com Michael Marcavage, diretor do Repent America, organização evangélica com sede na Filadélfia. Isto faz da religião uma outra ameaça à civilização, por interpretações simplistas e terrorismo ideológico. E não apenas na Filadélfia.
Por motivos religiosos, ou como justificativa a uma série de outras convicções, é possível que muitos estejam vendo na passagem destruidora do Katrina uma espécie de punição, da instância do insondável, pelo que a máquina de guerra dos Estados Unidos produziu nos últimos tempos em países como Afeganistão e Iraque. Neste caso, os americanos estariam provando os efeitos de seus próprios métodos.
Com pedido formal de ajuda dos Estados Unidos a países da Europa, no domingo (4/9), é possível que a sensibilidade pública possa mudar, mas por enquanto essa é apenas uma possibilidade.
Capacidade de reflexão
Entre os jornais que reagiram à fúria do Katrina, nenhum teve experiência mais dramática que o The Times-Picayune, de Nova Orleans, um dos focos da destruição.
Logo no início da catástrofe, enquanto George W. Bush ainda permanecia em férias no seu rancho no Texas, o Times-Picayune publicou um ‘ajudem-nos’, dirigido a quem quer que fosse capaz disso. Como a resposta fosse lenta, desencontrada e exasperante, o jornal resolveu resistir com as próprias forças, a exemplo do que fizeram milhares de pessoas individualmente.
O que o editor Jim Amoss e sua equipe experimentaram com essa medida foram cenas de pura ficção. De início, as oficinas (geralmente situadas em lugares bem protegidos) foram tomadas pelas águas e o edifício cercado cada vez mais, como numa cena de dilúvio. Nos corredores do prédio, no número 3.800 da Howard Avenue, funcionários e suas famílias tinham abrigo precário que foram forçados a abandonar à medida que o nível das águas, vazando do Lago Pontchartrain e do Rio Mississippi, subia cada vez mais.
James O’ Byrne, editor, e Doug MacCash, crítico de arte, saíram para uma inspeção de bicicleta pelas proximidades e arriscaram-se a encontrar a fúria tanto de atacantes como da polícia – que ameaçou, entre outros, o fotógrafo free-lancer do New York Times Marko Georgiev.
O Times-Picayune está resistindo na versão online e por ora ninguém sabe se terá condições de retomar a tiragem de 270 mil exemplares que exibia há poucos dias. Tudo depende da situação do edifício da Howard Avenue e do que se passou com as impressoras.
O jornal existe desde 1837, e por lá passaram dois dos mestres das histórias curtas: William Faulkner (1897-1962), nascido ali perto, no Mississippi, e William Sidney Porter (1862-1910), da Carolina do Norte. Ao menos um dos repórteres do jornal, Leslie Williams, está desaparecido e pode ter sido morto como centenas ou milhares de pessoas pela fúria do Katrina.
Por que as previsões meteorológicas não foram precisas a ponto de minimizar perdas e vidas? Por que as pessoas se recusaram a deixar suas casas (um terço da população local é formada por negros nas faixas mais pobres, sem dinheiro para pagar hotéis)? Por que a administração Bush demorou tanto a reagir ao desastre (estimulando a versão de que teria se utilizado dele numa espécie de limpeza étnica)? Por que a população mundial não expressou solidariedade com as vítimas do Sudeste dos Estados Unidos, a exemplo do que ocorreu em dezembro no Sudeste Asiático?
Por que, aparentemente, somos insensíveis à dor e ao sofrimento a cada dia que passa? Qual a possibilidade de que ao menos parte disso possa ser mudado?
A resistência da equipe do Times-Picayune é um belo exemplo e estímulo neste sentido. Mas talvez tudo dependa de tempo. De uma capacidade mínima de reflexão. De considerarmos que, de muitas maneiras, talvez possamos ser os únicos em toda a Galáxia e, por isso mesmo, o estilo de vida que adotamos não faz o mínimo sentido.