O encontro anual da Sociedade Européia de Reprodução Humana e Embriologia (ESHRE, na sigla em inglês), que se dará nesta semana, em Berlim, acena com manchetes imprevisíveis – como previu Vivienne Parry, do jornal inglês The Guardian, em matéria que O Estado de S.Paulo reproduziu na sexta-feira (25/6, pág. A 11).
As reações, na verdade, já começaram na semana passada, com o pedido de Robert Winston, um dos papas nessa área, para que seja vetado o acesso da imprensa à reunião.
É compreensível a preocupação do professor Winston em zelar pela boa imagem de sua área de pesquisa.
Compreensível, mas não aceitável. Pela simples e boa razão que não será com vetos simplórios como este que um tema delicado como reprodução humana, neste momento, com os impactos que já produz na sociedade, ganhará inteligibilidade possível e encaminhamento desejável.
Mas médicos, como jornalistas, primam por certa petulância. Nem todos, evidentemente. Não se pode generalizar sob pena de juízos sumários e equivocados.
Feita a ressalva, é preciso dizer que esta não é uma opinião pessoal. Quem duvidar, ao menos dos médicos, que consulte uma boa obra sobre história da medicina. No caso de jornalistas, a leitura de um trabalho como O reino e o poder – uma história do New York Times, de Gay Talese, é mais que suficiente.
Só gente cínica, com consciência clara de que está mentindo, irá negar que a possibilidade de clonagem humana é o fantasma que assombra a reunião desta semana. Daí a insistência de Winston em tentar, antecipadamente, fechar as portas a jornalistas.
Muitos pesquisadores nesta área dirão que o núcleo da reunião não é este e que técnicas inovadoras envolvendo células-tronco para tratamento de uma série de enfermidades, entre elas o mal Alzheimer, são o que interessa.
Não estarão mentindo. Mas também não estarão dizendo toda a verdade.
O que é o homem?
O psiquiatra, psicanalista e filósofo italiano Mauro Maldonato, num livro lançado há duas semanas (Raízes Errantes, Sesc/Editora 34), num belíssimo diálogo com Federico Leoni, também filósofo italiano, se pergunta num dado momento: ‘O que é o homem?’
O diálogo, no interior de ‘Olhares de fronteira’, um dos dez ensaios que formam o livro, na verdade refaz essa pergunta antiga. Ao que tudo indica, sem nenhuma chance de ser satisfeita com as respostas convictas que os jornalistas tanto apreciam. Por isso, o tema sobre clonagem, sem dúvida pairando na reunião sobre reprodução humana nesta semana, é tão perturbador. Porque o homem desconhece quem ele é.
O homem é um órfão cósmico, se quisermos uma resposta, a que oferece o filósofo americano e historiador da ciência Loren Eiseley.
Immanuel Kant (1724-1804), um homem fisicamente franzino, que nunca deixou o lugar onde nasceu (Königsberg, na Prússia), ‘ponto de convergência do pensamento filosófico anterior’, na expressão de Marilena Chauí, debruçou-se sobre duas grandes questões: o conhecimento e a ação humana.
A primeira está relacionada às possibilidades do conhecimento, suas limitações e esferas de aplicação. A segunda, de natureza moral, diz respeito à maneira como o homem deve agir para alcançar a felicidade, o bem supremo.
Como se vê, a filosofia, pela bioética ou outra das portas de entrada para a reflexão, está presente num encontro como este sobre reprodução humana. E esta é uma outra razão para que as considerações de um geneticista como Winston, por mais reconhecido que seja, não bastem para definir uma posição. Entre elas a de se fechar as portas a jornalistas.
Se a imprensa não se envolver com uma campanha de sensibilização da sociedade para as perspectivas da ciência, quem o fará?
Carl Sagan, em O mundo assombrado pelos demônios – a ciência vista como uma vela no escuro, em português, confessa com amargura a derrota da razão pelo obscurantismo. Argumenta que a ciência mesmo foi impotente em sensibilizar corações e mentes para suas promessas mais sedutoras, antecipando de alguma forma o desenvolvimento de um fundamentalismo religioso que, neste momento, opõe os dois lados deste mundo.
O problema de uma eventual clonagem humana, para se dar alguns passos nesse território tabu, certamente não depende de um posicionamento a favor ou contra, muito menos do que considera o Papa.
A clonagem eventual – sem, necessariamente, os propósitos frankeinsteinianos com que costuma ser apresentada –, depende, em última instância, de um fluxo histórico. Como todos os acontecimentos dependem desse fluxo e são, ao mesmo tempo, como o tear e o fio que tramam a história.
Automatismo e literatura
Ao menos sob duas perspectivas históricas a clonagem materializou-se.
Pelo mecanismo de relojoaria, com ápice no século 18, que permitiu a criação de sósias humanos confinados às possibilidades dos arranjos metálicos. Pelo roçar das engrenagens, distensão de molas e pressão do vapor. Homens e animais foram recriados assim.
A outra perspectiva foi e continua sendo a da ficção científica. Foi por esta via que Rick Deckard e andróides rebelados chegaram ao mundo, no romance de Phillip K. Dick que Ridley Scott levou ao cinema no clássico Blade Runner.
A menos que se interprete a ficção científica como mera fantasia e não como incursão possível na história do futuro, Blade Runner é um antecipador da discussão sobre um tema de rara beleza: a humanidade de um clone, tema de repulsa religiosa.
Mas ao menos a igreja cristã vetou por séculos a fio a prática da anatomia, alegando que o corpo humano, território do sagrado, não deveria ser exposto à profanação do conhecimento.
Agora, mesmo uma entidade aparentemente progressista como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) se opõe, em carta ao Congresso Nacional, ao uso de células-tronco em pesquisa científica. Com isso a CNBB compartilha da mesma posição obscurantista de George W. Bush.
Pela lógica de Bush, o uso de células embrionárias é abominável. E nada contraditória com atirar bombas sobre a população civil do Iraque e levar jovens soldados americanos à morte por uma guerra gerada pela manipulação sórdida de informação.
O filósofo e professor de filosofia da PUC-SP Antonio José Romera Valverde, num ensaio inédito a propósito da bioética, relata outro dos casos desconcertantes que tomam forma no cotidiano.
Em São Paulo, cita Valverde, ‘um especialista em fecundação artificial nada prudente’ teria aconselhado um casal que não conseguia ter filhos a utilizar o esperma do pai do marido. Com isso teria criado uma situação no mínimo exótica, fundindo e confundindo numa mesma figura a condição de avô, que já era sogro, à posição de pai. Assim, considera Valverde, no mesmo passo, o pai jurídico do ponto de vista natural é transformado em irmão de seu filho, embora nascido do útero de sua esposa.
Vivienne Parry tem um dos focos de seu escrito em clínicas interessadas em clientes que não podem ter filhos pelo método tradicional, ‘desesperados e prontos a pagar por um fio de esperança’.
E há muito mais complexidade nessa área: doadores desconhecidos para mulheres dispostas a arcar com uma ‘produção independente’. Como se essas crianças não tivessem direito e necessidade de um pai.
Freud reescreveria sua obra, especialmente Mal estar na civilização.
Que postura se espera particularmente da imprensa, não da mídia como um todo, frente a essa transformação radical na cultura, trazida por novas abordagens do que Valverde chama de ‘técnico-ciência’?
A resposta, ao que tudo indica, ainda pertence ao futuro.
De qualquer maneira, de um lado exclui abordagens simplistas, colhidas em entrevistas apressadas. De outro, exige portas abertas e um diálogo novo e franco não só com geneticistas, mas com todos os recriadores da cultura.
Ao contrário do que deseja Robert Winston.