A imprensa catarinense promoveu matérias com enfoque turístico para o novo empreendimento, já em execução, de um campo de golfe no Resort Costão do Santinho, famoso por abrigar celebridades e de olho nos turistas golfistas que, segundo a Associação Paulista de Golfe, gastam vinte vezes mais do que os turistas comuns.
Noticiou de leve, em colunas e notas, o pedido de embargo da obra feito pela procuradora regional da República Ana Lúcia Hartmann e salientou a liberação das obras, que foi surpreendentemente decretada pelo juiz Carlos Alberto da Costa Dias. Mas parou por aí.
A matéria com retranca de saúde ainda não saiu e a população catarinense está sendo levada a acreditar que um campo de golfe vai atrair mais riquezas para a ilha, que a construção de campo de golfe é uma aliada benéfica do meio ambiente e que o esporte chegará às camadas mais pobres da população num trabalho que deverá incluir as escolas públicas.
O câncer gástrico está sendo apontado, a partir de estudos geológicos, geográficos e químicos, como a doença que vai atingir em massa a população do Santinho, bairro de Florianópolis, num prazo estimado de dois anos e meio após o início das fertilizações necessárias para o campo de golfe de 570 mil metros quadrados a ser inaugurado em 2006 pelo famoso resort, que bancará o empreendimento orçado em cerca de R$ 25 milhões. O motivo seria a exposição da população à água contaminada proveniente do Aqüífero dos Ingleses, que passa embaixo do campo e abastece 130 mil pessoas no norte da ilha..
O que acontecerá se forem despejadas 25 toneladas ao ano de fertilizantes à base de nitrato, adicionadas à irrigação constante, numa área de 570 mil metros quadrados sobre um aqüífero arenoso e altamente permeável, que possui 80 metros de profundidade?
Não se sabe, a imprensa não foi atrás, a população catarinense não obteve as informações.
Em pareceres preventivos para impacto ambiental cruzados pelos pesquisadores catarinenses, o geólogo Luiz Fernando Scheibe, a geógrafa Eliane Westarb e a engenheira química Cristina Nunes atestam que a situação emergente de um campo de golfe em cima do Aqüífero dos Ingleses é de alto risco para a saúde da população local. As obras no resort continuam e, segundo assessor do resort, Sílvio Elias, não há motivos para a polêmica, pois a Fatma, órgão de meio ambiente responsável pela liberação de obras, concedeu a licença. Segundo a engenheira Cristina Nunes não foi feito estudo de impacto ambiental e a licença foi concedida sem que constassem os nomes dos fertilizantes, sem que fossem feitas análises do solo da região. A obra prevê ainda a construção de um teleférico que atravessará as dunas, área de preservação que não deve receber qualquer empreendimento. Nesse caso, o Ibama deveria intervir. Onde esteve a imprensa que não fez as devidas perguntas ao Ibama, mas foi tão cordial com o press release?
Em cima das montanhas
Conhecido como terra do sol nascente, país invejável em questões sanitárias, o Japão foi o último lugar do planeta a apresentar pessoas contaminadas pelo vírus do HIV, quando a maioria dos países já exibia números alarmantes. Hoje pesa sobre a fama de lugar sadio a maior incidência de casos de câncer gástrico no mundo. São 780 casos para cada 100 mil habitantes em todo o país. O câncer gástrico é hoje o segundo mais freqüente no mundo, com 800 mil novos casos por ano.
Por coincidência, talvez, o Japão é o país que mais construiu campos de golfe em todo o planeta nos últimos anos. Há 10 anos eram 100, hoje são 2.580 campos de golfe. A curva ascendente entre os números de câncer gástrico e os de campos de golfe do Japão é semelhante, mas até agora não há estudos japoneses que identifiquem a relação direta. Na Ásia o golfe foi o esporte que mais cresceu e dos 30 milhões de jogadores, 20 milhões são japoneses. Pode ser o nitrato proveniente dos famosos peixes salgados japoneses que resolveu atacar a população nipônica um dos fatores para o salto nos números de câncer gástrico no país, mas seria interessante ressaltar que a dieta rica em peixes salgados e crus no país é milenar.
E vale lembrar que os campos de golfe no Japão são construídos em cima das montanhas, em terraplanagens gigantescas nas quais se utilizam toneladas de tratamento para plantar a grama e depois conservá-la em estado ideal para a prática do esporte.
A bactéria da hora
Curiosamente partiu do Japão a tese mais moderna e muito difundida entre os especialistas em gastrenterologia do mundo inteiro a respeito de uma causa bacteriológica para a alta incidência de cânceres gástricos no mundo. Seria a infecção pela bactéria Helicobacter pylori, que estaria associada ao câncer gástrico em 2,9% dos pacientes com idade média de 50 anos que foram acompanhados por 7,8 anos naquele país. Nenhum dos pacientes não-infectados pela H.pylori apresentou câncer gástrico. As estimativas mundiais sobre a infecção pela H.pylori são curiosas; cerca de 50% da população mundial está infectada por ela. A Agência Internacional para Pesquisa sobre o Câncer (Iarc), da França, atribuiu uma maior incidência da bactéria nos países em desenvolvimento. No Brasil calcula-se que sejam 70% e na África passa dos 90%. O continente africano, entretanto, apresenta incidência baixa de câncer gástrico e não chega a ter um lugar entre os 20 países que mais utilizam fertilizantes na agricultura, segundo a lista da Organização Mundial de Saúde (OMS). O Brasil é o quarto da lista; utiliza 89,4 kg/ha, são 5,8 milhões de toneladas por ano e o câncer gástrico aqui é a segunda maior causa de mortes por câncer.
Apesar da alta incidência de câncer gástrico no Brasil, país emergente em campos de golfe, com números ainda insignificantes, a última análise de mortalidade pela doença no país, no período entre 1978 e 1989, demonstra que assim como em outros países desenvolvidos, com exceção única do Japão, onde apenas o índice de mortes por câncer gástrico caiu, o câncer gástrico no Brasil também tem diminuído. Nas regiões Sul e Sudeste, por exemplo, o câncer de pulmão está à frente segundo o Inca, enquanto a prevalência maior de câncer gástrico aqui estaria concentrada nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Os motivos apontados para o declínio de câncer gástrico em países desenvolvidos, assim como em algumas regiões mais desenvolvidas do Brasil, seria uma melhor conservação dos alimentos e uma maior consciência da população sobre hábitos de higiene. Alimentos frescos, como hortaliças, legumes e carnes, quando mal conservados geram os nitratos que se transformam nos famosos nitritos que ao desregularem o pH gástrico favorecem o surgimento de câncer gástrico. Curiosamente, o Japão é um país desenvolvido, com uma vigilância sanitária de altíssimo nível. Detalhe: na África a incidência de câncer gástrico é uma das menores do mundo e a conservação dos alimentos uma das piores.
Essas coincidências de estudos cruzados não interessariam à população catarinense que bebe a água proveniente do Aqüífero dos Ingleses?
Esclarecer a população sobre a possível contaminação de um aqüífero seria urgente, afinal um rio pode ser despoluído, mas um aqüífero, uma vez poluído, não pode ser limpo.
O uso excessivo de fertilizantes associados à irrigação freqüente faz com que ocorra o acúmulo de nitrato (NO3) no tecido das plantas. O nitrato ingerido via alimentos tratados à base de fertilizantes passa à corrente sangüínea quando se transforma em nitritos formadores de nitrosaminas, substâncias comprovadamente carcinogênicas, especialmente danosas ao estômago e uma das causas apontadas de câncer gástrico pela Iarc.
Faz mal?
O aumento dos nitratos nas plantas por adubos nitrogenados já está comprovado no Brasil. Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Agronômico do Paraná –IAPAR ( MIYAZAWA et.al.;2001) os alimentos cultivados no sistema orgânico apresentam concentração de nitrato menor do que 1.000mg/kg, enquanto os de cultivo hidropônico, ricos em fertilizantes à base de nitratos, apresentam um teor entre 6.000 e 12.000 mg/kg. O teor de nitratos no cultivo convencional atingiria, segundo a pesquisa, uma média entre os orgânicos e os hidropônicos.
Segundo Marco Zambrano, gastrenterologista em Florianópolis, as pesquisas médicas indicam que os nitratos dos alimentos embutidos ou salgados são uma das múltiplas causas já comprovadas do câncer gástrico. ‘Não só nos alimentos, mas há pesquisas que atestam sobre maior incidência de câncer gástrico a partir de água de poços com alta concentração de nitratos, o que foi verificado no Chile’. Segundo o médico, em termos científicos, não se pode dizer que a contaminação via fertilizantes à base de nitratos no campo de golfe do Costão do Santinho vai causar câncer gástrico, doença multifatorial, mas ao ser questionado se beberia água proveniente de um aqüífero sob um campo tratado com nitratos, respondeu: ‘Em tese não.’
Há algumas perguntas simples a serem feitas, mas a imprensa catarinense, surpreendentemente, não faz.
Nitratos provenientes de adubações nitrogenadas fazem mal? Fazem, há pesquisas comprovando. Nitratos provenientes de alimentos embutidos e enlatados fazem mal, causam câncer? Sim, há pesquisas comprovando.
Nitrato colocado na água que as pessoas bebem faz mal? Não se sabe, não há pesquisas que comprovem. Será que o campo de golfe do Santinho vai, na prática, comprovar algo? O que será?
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Jornalista