Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Rumo à Idade Média

De Os Noivos, de Alessandro Manzoni: ‘É uno dei vantaggi di questo mondo quello di potere odiare ed essere odiati senza conoscersi’ (uma das vantagens deste mundo é poder odiar e ser odiado sem se conhecer).

No primeiro semestre de 2001, o ativista francês José Bové foi recebido com loas e glórias no Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, encontro planejado como contraponto ao Fórum Econômico Mundial, que tem lugar em Davos, na Suíça.

Dali partiu para o município de Não-Me-Toque, a 268 km de Porto Alegre, onde, com a cumplicidade e a omissão de diversas autoridades, destruiu um experimento científico que se fazia com soja transgênica. Contou com a ajuda providencial de integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST).

Para os que aprovavam suas blasfêmias contra a modernidade, fez muito bem o francês, cuja profissão é dada pela imprensa como a de ‘ativista’.

Designar é uma das funções primordiais da imprensa. ‘Diretas Já’ e ‘Collorgate’ são dois exemplos, mas a segunda é de matar porque incorpora a designação que repórteres dos EUA deram aos eventos que levaram à renúncia do presidente americano Richard Nixon há mais de trinta anos, forçando a vinculação com Watergate, nome do prédio onde funcionava o comitê do candidato democrata George McGovern.

Nixon venceu aquelas eleições, mas, com a revelação de que espionara o adversário, teve que renunciar à presidência em 8 de agosto de 1974. E a imprensa brasileira continuou designando outras arapongagens políticas em que a palavra inglesa ‘gate’ é embutida na denominação.

Faz coisa análoga com o segundo marido de Marta Suplicy, a quem designa sempre como ‘o franco-argentino Luís Favre’, identificando-o pela dupla nacionalidade, que mistura França e Argentina, e pelo pseudônimo. Exemplo colhido no Jornal do Brasil, comentando o segundo casamento da prefeita, agora tentando a reeleição: ‘Domingo, 21 de setembro de 2003, Marta Suplicy diz ‘sim’ a Luis Favre, cujo nome completo é Felipe Belisário Wermus dit Luis Favre, 53 anos’. A imprensa raramente informa o nome que consta nos documentos, restringindo-se ao pseudônimo.

O problema e a solução

É importante designar as coisas e pessoas pelos nomes verdadeiros, ainda que, ampliando a identificação, possam e às vezes devam ser citadas outras denominações que esclareçam mais os leitores. Tal prática evita, como agora, que as sementes transgênicas sejam tratadas como coisas ruins por si mesmas.

Será que a ministra Marina Silva, peça-chave incrustada no baluarte da República, identificado como Ministério do Meio Ambiente, não terá também alguma coisa contra a enxada, o facão, a foice, o chicote e o ancinho, instrumentos agrícolas já utilizados em pavorosos crimes no meio rural? Sim, porque se as lições de José Bové prosperarem absolutamente, não deveríamos pôr em questão também essas ferramentas?

Se um brasileiro destruísse a roça de franceses na França, ele penaria um bocado na mão da polícia. No Brasil, um francês fez isso sob aplausos de quem pouco entende de plantar e colher.

É óbvio que a pesquisa científica não se faz à base de uma falsa luta entre o Bem e o Mal. Já passamos a idade das trevas? Parece que não. Depois de José Bové, temos uma ministra que é figura exponencial de um exército de mariposas que proclamam abominar um mundo moderno que lhes dá fama instantânea, justamente pelo avanço tecnológico e científico que permite a onipresença de luzes, câmeras e repórteres onde quer que os fatos aconteçam. Mas se tais personalidades presidissem os setores de pesquisa, talvez a luz e a câmera não tivessem sido ainda inventadas…

O Estado de S.Paulo fixou com precisão os desdobramentos da questão dos transgênicos ainda na denominação de uma de suas ‘Notas e Informações’ (Estado, 16/10/04, pág. 3): ‘MP dos Transgênicos é vitória de Marina’.

Escrevi na revista Época, em fevereiro de 2001:

‘Os poderes do Estado devem ser leigos, como entendia o Marquês de Pombal, déspota, porém esclarecido. Substituído por dogmas religiosos e anticientíficos, resulta em fogueiras de outros heréticos, sejam leigos ou religiosos. O Papa já pediu perdão por Galileu Galilei. Quem pedirá perdão aos cientistas que estão trabalhando na pesquisa com os transgênicos? Ou serão eles que devem perdoar Bové e seus asseclas com o clássico ‘eles não sabem o que fazem’?’

O presidente Lula, como bem diz o Estadão, para não desagradar a ministra e evitar sua demissão, deixou de lado suas convicções sobre os transgênicos, recuou. Conclusão do editorialista:

‘Seja qual for a razão, o fato é que Lula prefere ver diminuída a sua autoridade de presidente da República e prejudicar o interesse público a contrariar a ministra a ponto de fazê-la se demitir, como ela costuma ameaçar. O que mostra o quanto de preparo lhe falta para governar o Brasil’.

Só não concordo que Lula seja o problema. Ele é a solução. Homem de diálogo, capaz de negociar até exageradamente, não está sendo ouvido por outros ministros. Não consigo acreditar que na equipe do presidente predominem as desjeitosas conceituações da ministra Marina Silva.

Procissão na chuva

O ministro Márcio Thomaz Bastos não integra mais o governo? O CNPq foi fechado? E o senador Aloízio Mercadante estava brincando quando disse que a aprovação, no Senado, do substitutivo do projeto da Lei de Biossegurança por 77 votos a 2, dava respaldo suficiente para o presidente editar uma Medida Provisória que exprimisse tal consenso?

O governo gosta de perder eleições? Não terá havido influência nenhuma de tal impasse sobre a questão da soja transgênica nas recentes eleições municipais no Rio Grande do Sul, estado que é base tradicional da agricultura brasileira?

Quando os radicais do meio ambiente aparecem de idéias e mãos dadas com essas figuras apocalípticas das bancadas religiosas em Câmaras e Assembléias, excessivamente amparados por quinta-colunas da imprensa que abdicam de pensar em nome de conveniências e ondas, dá um frio na espinha: assim o Brasil não vai a lugar algum. Ou melhor, vai. Cumprirá sempre o dito do Barão do Itararé: ‘De onde menos se espera, dali mesmo é que não sai nada’.

Como é que se pode misturar ciência, religião e bandeira ideológica num caldo grosso como este? Daqui a pouco viveremos outra vez a revolta da vacina de 1904, para comemorar seu centenário. E os novos ‘Oswaldos Cruzes’ correm o risco de serem derrotados.

Da imprensa, em 1904, para dar uma pálida idéia de que quase tudo se repete em nosso país há muitas décadas:

‘No governo do presidente Rodrigues Alves foram feitas obras de saneamento e embelezamento no Rio de Janeiro. Muitas famílias tiveram seus cortiços desocupados e a conseqüente mudança para os morros (favelas).

‘Por outro lado, o Serviço Sanitário investia contra as epidemias (cólera, peste bubônica, varíola e febre amarela).

‘Quando o sanitarista Oswaldo Cruz decreta a vacina obrigatória, a população pobre aproveita a ocasião para realizar passeatas, comícios contra o governo, saques de lojas e depredações de bondes e carroças. Era a Revolta da Vacina (o povo punha para fora toda a revolta acumulada).

‘Políticos e militares de oposição tentaram aproveitar a revolta popular para depor Rodrigues Alves, mas não conseguiram’.

O presidente Lula não pode ter medo! Está com medo de quê, presidente? Se algumas bandeiras de defesa do Meio Ambiente prosperarem tal como estão formuladas, daqui a pouco o Brasil perderá a soberania na Amazônia. Na agricultura já está correndo o risco de só plantar o que aqueles que pouco entendem de lavoura aprovarem. Como os ambientalistas são muito mais organizados do que os plantadores, já podemos antever quem vencerá.

É nestas horas que o Estado deve retomar a lição do Marquês de Pombal: o Estado é leigo! O Estado não pode incentivar a realização de procissões para obter chuva ou estiagem. Para o segundo caso, ninguém ainda fez procissão porque ninguém faz procissão na chuva. Da mesma forma, o Estado, quando gasta o dinheiro do contribuinte em pesquisa científica, gasta-o bem. É uma de suas melhores aplicações. O fato de não partilhar os benefícios com todos é que é a questão, não o fato de apoiar as pesquisas.