Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Samba, ciência e a Terra azul

Alguém escreveu, em algum lugar, referindo-se a Angie Cepeda, que é um atentado à realidade que ela seja uma criatura real, viva e respire como os outros animais.

Nos quatro dias – núcleo do carnaval no Brasil – dessas duas semanas, no entanto, a bela Cepeda, que arrancou suspiros em Pantaleão e as visitadoras, filme baseado no romance homônimo de Mario Vargas Llosa, certamente não atrairia mais atenção que milhares de outras belezas nativas.

Aos olhos de boa parte do mundo, o carnaval brasileiro, amplificado pela mídia internacional, não vai muito além de mulheres belas e nuas, numa festa que parodiando o auge do rock, seria uma síntese de sexo, droga e samba.

A mídia, especialmente a televisiva, tem uma descarada preferência pela lógica fácil, de acesso rápido e absolutamente efêmera.

Em nossa infinita tolerância nesta região que inclui o equador, estigmatizada desde os tempos de Pompônio Mela (geógrafo hispano-romano do século 1, para quem a vida seria impossível no equador, onde a água ferveria, nem a zona temperada austral seria saudável, ao contrário da boreal), sabemos que esta festa, radical para padrões mais sumários, estende-se muito além de meia dúzia de conceitos.

Prática de censura

Mas mesmo nós podemos nos surpreender com o enredo de algumas escolas, em que temas científicos, há pouco restritos a certo academicismo, acenam com a possibilidade de contagiar a multidão comprimida na avenida.

No Rio, a Império Serrano incorpora o ambientalismo, tratando do equilíbrio homem/natureza, assunto que dividiu a imprensa internacional voltada para a cobertura do encontro sobre mudança climática, no Reino Unido, na semana passada.

Mike Hume, do Times, denunciou, na edição de quarta-feira (2/2) o segregacionismo que teria vetado a palavra aos céticos de que o aquecimento global que vem sendo observado tenha relação com o efeito-estufa, gerado por atividades humanas.

A agência russa RIA divulgou a irritação do conselheiro econômico de Vladimir Putin, Andrei Illarionov que não teve seu nome incluído na relação de expositores da British Climate Change Conference. Segundo Illarionov, citado pela agência, ‘falar aqui é impossível, devido à prática da censura contra os que pensam de forma diferente’.

Atrás de alternativas

A mídia nacional deu pouca importância ao encontro. Temos problemas suficientes por perto, como estradas miseráveis e pontes que não se sustentam, para nos preocuparmos com tragédias que podem chegar por outras vias.

Para a Império Serrano, afinada com o que os acadêmicos chamam de ‘main stream’, algo como a ‘corrente dominante’, o homem interfere sim, e de forma indesejável, nos ciclos da natureza.

Quanto aos céticos, se não ficaram felizes com a exclusão de que foram vítimas, no que têm razão (‘o ceticismo é crucial para a investigação científica’, como argumenta Hume, do Times), devem reconhecer que dar razão exclusivamente ao conhecimento científico talvez seja o equivalente a colocar todos os ovos numa cesta só. Algo que nossas avós nunca recomendaram.

E antes que os céticos daqui saquem suas armas, convém dizer que isto não equivale a desautorizar a ciência. Mas levar em conta outras considerações. Se o aquecimento global, de fato, estiver relacionado a atividades humanas, como pensa a maioria dos pesquisadores, e também os sambistas da Império Serrano, ao menos é possível pensar em alternativas.

Serra da Cantareira

Se darão resultados ou não é outra discussão. Sir Martin Rees, astrônomo real e um dos mais respeitados astrofísicos da atualidade, lançou um livro em 2003 (Our Final Century) prevendo uma possibilidade de 50% de a humanidade extinguir-se ao longo deste século por problemas que vão de desastres ambientais à liberação, acidental ou intencional, de microorganismo letais.

Como se vê, há certa afinidade entre o refinado pensamento de Rees e as leigas mas bem ritmadas preocupações da Império Serrano.

A Tradição, outra escola do Rio, fala do plantio de soja e das promessas de alimentação do mundo, sem entrar no mérito da soja transgênica, que divide opiniões ambientalistas e a cobertura da mídia.

E a grande mídia nacional, desde que fazendeiros brasileiros contrabandearam sementes transgênicas para semear suas terras, não produziu um material consistente com a necessidade de separar uma coisa da outra. O que significa dizer que, contrabando de sementes, necessariamente, não implica lavouras ameaçadoras.

Em São Paulo, a Acadêmicos do Tucuruvi foi outra que embarcou na onda ambientalista, com apologia da Serra da Cantareira, pulmão verde que envolve a zona norte da cidade. Ao contrário do que diz o samba, no entanto, a reserva da Cantareira não está tão protegida quanto seria necessário. Uma estrada secundária paralela à BR-381 (Fernão Dias) até Mairiporã tem uma ocupação crescente e desordenada, onde o lixo mal-cheiroso fermenta e transborda para o leito das duas vias.

Mancha verde

Evitar o desmatamento e estimular o florestamento, ao menos em princípio, podem amenizar um dos cenários expostos na conferência do Reino Unido, prevendo que o aquecimento atmosférico produzirá deslocamento de até 150 milhões de pessoas – quase o equivalente à população brasileira – até meados deste século, em todo o mundo.

Certamente que é saudável, como fez um jornalista inglês, lembrar as palavras do crítico e editor norte-americano Henry Louis Mencken (1880-1956) sobre a estratégia do poder político de manter a população sempre alarmada e assim submetida ao desejo de segurança, por um sem número de ameaças imaginárias. A mídia, especialmente a impressa, faz algo bem parecido para construir suas manchetes. Com alguma freqüência lê-se que no período de alguns anos um determinado cometa ou asteróide irá chocar-se com a Terra, algo tão inconsistente como transportar água nas mãos.

A Mancha Verde, do Palmeiras, vai direto à transgenia com o tema ‘Da Pré-História aos Transgênicos, Mato Grosso, Uma Mancha Verde no Coração do Brasil’. Um crítico diria com razão que é uma ‘forçada de barra’. Até porque a letra do samba é genérica e um pouco defasada, ao menos em relação aos ‘índios gigantes’, os crenacarores. Já há algum tempo eles deixaram o Alto Xingu para retornarem às suas terras originais, quase no Baixo Xingu, mudança que, certamente, não afetará os méritos da escola.

A Terra e a maçã

A Tom Maior, também de São Paulo, foi outra escola que apostou no ambientalismo, prevenindo para a escassez de água (‘Sabendo Usar não Vai Faltar’), os riscos do desmatamento, a poluição e a extinção de flora e fauna.

Assim, o carnaval, em contradição com sua origem etimológica (‘abstenção de carne’), ao menos no sentido figurado, revela-se um laboratório capaz de incluir reflexões como as feitas por Patrick Bateson, professor de Etologia em Cambridge, na última edição da revista Science (4/2). Com base em estudos de psicólogos e sociólogos, Bateson lembra que muitos resultados científicos reproduzem o desejo dos pesquisadores que conduzem as investigações de forma a atingirem uma constatação pré-definida, de acordo com suas preferências.

Daí a validade possível das letras de samba, de muitas maneiras a fermentação filosófica dos excluídos da possibilidade de considerações científicas. Mas nem por isso muito mais suspeitos. Ao menos em relação a catástrofes como as anunciadas pelo aquecimento global e que parecem materializadas em tempestades inesperadas varrendo furiosamente em volta do mundo.

Entre outras razões, porque a atmosfera da Terra é como a casca, em relação ao volume de uma maçã. É extremamente delicada ainda que, como disse Gagárin, seja a razão de a Terra ser azul.