Com a ironia refinada que caracterizou sua vida curta, Mário Raul de Morais Andrade (1893-1945), o poeta, escritor, crítico literário, teórico de arte, musicólogo, folclorista e fotógrafo, criador de Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, fez a previsão que o tempo se encarrega de confirmar: ‘Ou o Brasil acaba com a saúva, ou a saúva acaba com o Brasil’.
Como sabe quem já teve algum contato com as saúvas (Atta spp), essas formigas cortadeiras de cor avermelhada, corpanzil ameaçador parecido ao de uma criatura de Guerra nas Estrelas, têm enorme disposição de trabalho. Operam especialmente no fim do dia e durante a noite, quando a maior parte das outras criaturas prefere descansar. Em plena era de biotecnologia, entre outras maravilhas científicas, elas permanecem de certa forma um enigma – mas, de maneira concreta, uma assustadora ameaça.
O alvo das saúvas são as lavouras mais promissoras, as árvores em processo de crescimento com as folhas e brotos mais tenros. Literalmente da noite para o dia tudo pode ser destruído, como numa praga bíblica. Só que, em lugar dos gafanhotos, insetos freqüentes na Bíblia, estão as saúvas, originárias do continente americano.
Os pesquisadores científicos têm queimado dúzias e dúzias de células nervosas em batalhas contra as saúvas. A estratégia mais recente, segundo informa a Agência Brasil, concentra-se na investigação de determinados fungos que, em princípio, poderiam exterminar uma colônia inteira dessas criaturas que parecem pequenos blindados vivos.
O intrigante é que alguns microorganismos com potencial de dizimar uma colônia são neutralizados por outros, numa bioquímica que ainda está para ser decifrada. Assim, a colônia demonstra impressionante capacidade de assegurar sua sobrevivência apesar de toda ameaça potencial interna. Alguns entomólogos advertem: mesmo que um patógeno (microorganismo capaz de produzir desequilíbrios) consiga vencer a barreira de defesa comportamental das saúvas, ainda terá que superar a resistência dos compostos produzidos pelas bactérias e que atuam em benefício dessas formigas.
Arquitetura engenhosa
Para compreensão um pouco mais clara das saúvas é preciso dizer que elas são catalogadas como insetos sociais, o que significa que não fazem ataques entre si. Atacam, em conjunto, outras formas de vida, mas consideram um código de ética para evitar choques internos que não são benéficos ao grupo.
Entomólogos já confirmaram que a saúva ocorre em todo o Brasil, com exceção de uma pequena área insular, o arquipélago de Fernando de Noronha.
Mas não se pode desconsiderar a possibilidade de que o tráfego crescente, especialmente de ricos e famosos, entre o continente e o arquipélago, não seja acompanhado de uma eventual rainha já fecundada – o que asseguraria, também em Fernando de Noronha, a presença da saúva.
A reprodução da saúva se dá uma vez ao ano, ao menos na região Sudeste. Se vier a se instalar em Fernando de Noronha, e dessa maneira dominar toda a extensão do território nacional, essa formiga definhadora de riquezas e do bem-estar social poderá revelar novos hábitos e estratégias.
No Sudeste, e em toda a área continental, a reprodução da saúva ocorre por um vôo nupcial de fêmeas virgens que deixam uma colônia acompanhada de machos para o acasalamento. Após a fecundação, cada uma delas organiza sua própria colônia.
Em cada colônia de saúvas existe apenas uma rainha responsável por toda a procriação. Se ela morrer, a colônia entra em colapso, o que pode ajudar na compreensão do sistema de segurança de um formigueiro. Além de uma arquitetura engenhosa baseada num sistema de túneis que permite fuga em massa, em caso de eventual ameaça, uma colônia dispõe dos sistemas de segurança bioquímicos ainda não desvendado pelos entomólogos.
Fábula popular
Formigas são insetos muito antigos. Quando o homem chegou neste planeta as formigas já estavam instaladas com seus sistemas complexos de eficientes de expansão, controlados apenas parcialmente por pássaros e animais como o tatu, o tamanduá e ao menos um besouro da espécie Canthon.
A crescente agressão ambienteal, no entanto, tem eliminado tatus e tamanduás, deixando espaço cada vez mais desimpedido para as saúvas.
Formigas foram metáforas muito convincentes nas fábulas de Esopo, escritor grego do século 6 antes de Cristo, contemporâneo de Thales de Mileto, tido como o primeiro filósofo.
Como acontece com alguns tópicos envolvendo as saúvas, ainda hoje o nome de Esopo e sua história de vida continuam envoltos em mistério. Algumas versões sustentam que era corcunda, gago, mas de inteligência rara. Contava histórias aparentemente simples e divertidas, com lições moralistas, recorrendo aos mais variados animais como personagens, incluindo a formiga.
Uma biografia egípcia do século 1 relata que Esopo foi vendido como escravo a um filósofo que, sensibilizado por seu talento, concedeu-lhe a liberdade.
Não se pode negar, ao menos à primeira vista, que Esopo foi um homem de sorte. Depender das decisões de um filósofo, no passado como no presente, é uma experiência incomum. O mais freqüente é nos depararmos com homens estúpidos, muitos deles cretinos, superficiais e imediatistas em seus desejos, mesmo que tenham sido esculpidos pela educação formal e assim possam impressionar muitos de seus contemporâneos.
Há diversas versões para a morte de Esopo. Uma das mais trágicas relata que o genial fabulista grego foi atirado do alto de um precipício, no famoso oráculo de Delfos, acusado de sacrilégio. Quem conhece Delfos, onde as pitonisas vaticinavam o futuro, sabe que até os precipícios ali são de rara beleza, flutuando sobre um mar de um azul indefinível. Mas um precipício é sempre um precipício para quem despenca por ele.
As fábulas de Esopo, reunidas por um monge bizantino do século 14, inspiraram numerosos autores ao longo da história. Um deles foi Jean de La Fontaine (1621-1695). Filho de burgueses, La Fontaine teve apoio de sua classe social para se dedicar à literatura. Escreveu poesia e fez adaptações de comédias. Mas foram As Fábulas, escritas em versos e distribuídas em doze livros (publicados entre 1668 e 1694), que o tornaram conhecido.
Com sua refinada sensibilidade para fundir imagens poéticas e de humor, La Fontaiane deu atualidade a Esopo e foram verdadeiros retratos da sociedade, com seus vícios, despudores e indiferenças.
O sucesso de As Fábulas assegurou a La Fontaine uma cadeira na prestigiosa Academia Francesa de Letras. Certamente sua fábula mais popular é A Cigarra e a Formiga, na qual a determinação e previdência da formiga, em contraposição à negligência existencial da cigarra, são postas em evidência.
Ocupação geral
Muitos outros autores ao longo da história trataram da formiga. Foi o que fez Frei Bernardino de Sahagun, em História Geral das Coisas da Nova Espanha, abordando a formiga vermelha, ou de barriga vermelha.
Lewis Carrol também fala delas em seu enigmático Através do Espelho.
Mark Twain, em The Higher Animal, se diz convencido de que ‘a formiga padrão não existe’.
Antonia Susan Byatt, novelista britânica nascida em 1936 e mais conhecida como A.S. Byett, em Possession, garante que ‘as formigas não trabalham para nenhum senhor’. Mas Dante, como seria de se esperar, é mais trágico ao falar das formigas: ‘Eu as vi precipitarem-se dos dois lados e cada sombra beijava a outra, sem cessar. Todas satisfeitas com o mais breve contato’.
Quanto a William Gould, em Uma Descrição das Formigas Inglesas, de 1747, diz que ‘muitas são as instruções morais que advém da visão de uma colônia de formigas’.
Deborah Gordon, entomóloga norte-americana e professora na Universidade de Stanford, publicou no Brasil, pela Jorge Zahar Editor, um fascinante trabalho nesta área: Formigas em Ação – Como se Organiza uma Sociedade de Insetos (144 págs, 2002), capaz de atrair a atenção dos mais desinteressados nesta área de investigação da natureza.
Na edição desta semana (nº 1909, de 15/6/05), a revista Veja aborda o desmatamento no Brasil resultado da ganância humana e não pela ação de saúvas e outras formigas cortadeiras. É um relato desanimador ao final da Semana Internacional de Meio Ambiente.
Desanimador não apenas pela queda das árvores, destruição que no Brasil começou com a chegada a frota de Cabral, como mostra em outra obra, também da Jorge Zahar Editor, o historiador José Augusto Pádua, em Um Sopro de Destruição (318 págs, 2002).
Veja enfoca a questão sob um ponto de vista exclusivamente ideológico, como pretensa justificativa a uma verdade messiânica, na verdade a-histórica, reducionista e por isso mesmo incapaz de estimular juízo de valor consistente com a mesma necessidade nacional de nos livrarmos de saúvas e suas metáforas.
Que os responsáveis sejam punidos por esses abusos, é uma necessidade. Que a manipulação oportunista seja rechaçada é outra, da mesma magnitude e grandeza. Ao que tudo indica, não há ambiente, no espaço nacional, que não tenha sido ocupado pela saúva.