Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Se ciência é democracia, os eleitores não somos nós

Soaria estranho, espero, ao leitor se lhe dissessem que a gravitação, para funcionar, dependesse de fiéis sacerdotes de Newton (ou Einstein ou outra divindade) a rezar com fervor.

Soaria também estranho, espero, se a gravitação dependesse de votação. ‘Você gostaria que uma pedra atirada para cima: a) caísse de volta à Terra; b) pairasse no ar; c) saísse voando para o espaço?’, perguntaria o plebiscito. E as leis da gravidade seriam revogadas, alteradas, ratificadas ou emendadas de acordo com a vontade democrática. (O que facilitaria bastante nosso projeto de veículo lançador de satélites e revolucionaria os meios de transporte…)

Goste-se ou não, fatos e hipóteses científicos não funcionam assim. Os fatos são o que são – dados do mundo – e as hipóteses dependem de se os fatos estão a sustentá-las ou não. Por mais que relativistas epistemológicos queiram pensar o contrário. Verdade que existe espaço para interpretação dos fatos científicos e as hipóteses podem ser modificadas. Mas o terreno de manobra é pequeno: não adianta alegar que se trabalha com um paradigma divergente do mainstream – o prédio vai desabar se mudarmos, a nosso bel-prazer, o valor das constantes de resistência dos materiais nas fórmulas, não importa quanta fé tenhamos em que fundações de papel possam suportar toneladas de concreto. A Natureza é uma tirana autocentrada e surda aos apelos humanos. Em outras palavras: se ciência é democracia, os eleitores não somos nós, humanos, mas os dados observacionais.

Exagerado dizer que o informativo da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, o Jornal da Ciência, seja um defensor da relativismo epistemológico caricatural. Por outro lado, a troca de mensagens que tive com a direção do informativo sugeriu-me que o JC tem uma concepção estranha de ciência (www.geocities.com/biomabrasil/emails-jornal-da-ciencia.html).

Defensores da Terra plana

O mote da conversa foi a publicação, mais uma vez, de uma opinião criacionista (www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=25892), sob a pomposa alcunha de design inteligente, o criacionismo que não ousa dizer seu nome, conforme diversas vezes desmascarado aqui mesmo neste Observatório [ver remissões abaixo]. Indaguei aos responsáveis pelo JC o motivo da publicação, uma vez que se trata de um informativo sobre ciências, e não sobre religião. (Não nos esqueçamos de que, apesar de nomes como criacionismo científico, design inteligente, complexidade irredutível e similares soarem, aos desavisados, como algo realmente científico, não passa de uma propaganda enganosa – como aqueles fantásticos aparelhos: anunciados na TV, parecem a maravilha da tecnologia, mas, ao serem retirados da embalagem, deparamos com uma bugiganga que não cumpre um terço do prometido; o criacionismo, tenha o nome que tiver, é apenas religião sob vestes de ciência. Não que haja algo de errado em ser uma religião. Mas há muita coisa de errado em se tentar passar por ciência sem sê-lo.)

Com alguma surpresa (não muita, é verdade) ouvi (li) nas argumentações da direção do JC, expressões como justiça, consciência popular, democracia, fluxo de informação, censura… como justificativas para a publicação da opinião criacionista. Ou, nas palavras da direção do JC: ‘Não consideramos justo nem adequado discutir a questão do criacionismo x evolução publicando apenas a opinião dos evolucionistas. Isto nos retiraria toda a autoridade no debate desta e de outras questões. É preciso deixar fluir a democracia, que precisa crescer, se aperfeiçoar e se consolidar.’

A conseqüência da aceitação como válida da argumentação acima seria: para discutir sobre fontes alternativas de energia, projetistas de motos-perpétuos deveriam ser consultados; para falarmos sobre a cosmologia moderna, defensores da Terra plana teriam que ser ouvidos; para falarmos sobre a Segunda Guerra Mundial, os negacionistas do Holocausto deveriam ter seu espaço… Por mais absurdas e sem base que fossem suas alegações. Tudo em nome da suposta justiça, adequação e democracia.

Pânico geral

Ciência, como dito acima, não é questão de opinião pessoal, de fé, de voto da maioria. Ciência é questão de dados observacionais – existem dados que apóiam um ponto de vista? Se sim então está aberto à discussão científica. Não é o caso do criacionismo ou da existência do saci-pererê.

Fluxo de informação? De fato, a ciência não funciona a contento sem a livre troca de informações. Mas criacionismo não é informação. É ruído. Pretende trocar um conhecimento baseado em dados observacionais por um ponto de vista de bibliografia única, trocar hipóteses consistentes sobre mecanismos empiricamente testados (seleção natural, deriva genética, pressão de mutação…) por uma especulação insondável (os desígnios inescrutáveis de um criador ou de um designer caprichoso – volúvel e não cuidadoso). Os criacionistas ficam felizes em apontar eventuais falhas das teorias da evolução biológica – na maioria dos casos, as falhas são de entendimento dos próprios criacionistas –, mas ocultam os rombos de seu ponto de vista com um obscuro: ‘Mistérios do criador’ (as imperfeições no suposto design dos organismos, a presença de uma mesma mutação – não vital – em organismos próximos, os padrões de distribuição biogeográfica e assim por diante). Os criacionistas são incapazes de formular uma hipótese testável da tese que defendem. As alegações criacionistas que podem ser testadas têm como resultado quase sempre a refutação do criacionismo – para se protegerem disso, criam alegações adicionais que tornam virtualmente impossíveis de se averiguar a correção ou incorreção da tese.

Falemos agora de censura. Os jornalistas, com razão, têm horror à censura. Mas, por vezes, o pânico parece ser tão grande que enxergam censura onde não há – não posso deixar de me lembrar da paranóia macartista vendo a sombra comunista em todos os lugares. Com medo de barrar pontos de vista legítimos – claro que, sob o ponto de vista religioso, o criacionismo tem sua legitimidade, mas não do ponto de vista científico como dito acima – parecem preferir deixar passar qualquer bobagem.

PET no medidor de luz

E como evitar as tais injustiças temidas pela direção do JC? Simples. Todo veículo de comunicação possui critérios de publicação – seguramente o JC não publicaria uma receita de bolo, afinal é um veículo sobre ciência, e não culinária. Censura? De modo algum. E mesmo um texto sobre ciências, mas repleto de impropérios poderia ser barrado. Novamente não seria nenhuma censura. Ou mesmo um texto científico respeitoso, mas cheio de erros ortográficos e de pensamento impenetrável poderia ser devolvido ao autor – talvez com um pedido para as correções e esclarecimento devidos. Sem censura. (Ou se quiserem chamar isso de censura, certamente haveria de se reconhecer que seria uma censura bastante distinta da aplicada por um representante da caserna plantado nas redações.)

Chupa-cabras, óvnis, sacis-pererês, cura do câncer por meio de beberagem de babosa e mel, antigravidade, moto-perpétuo, Nessie, mapinguari… tudo isso seria, espero, barrado para publicação no JC sem um mínimo de indício sólido a sustentar tais alegações. Diálogo não é sucessão de monólogos. Simplesmente dar espaço, sem nenhuma crítica, ao criacionismo, não é diálogo, não é aperfeiçoamento da consciência crítica da população. Quando claramente os dados dão suporte a um ponto de vista em detrimento a outro, tratar todos em pé de igualdade é forçar uma distorção desastrosa. Não importa quão honesta fosse a opinião do missivista em relação a isso. Não importa quão difundidas estejam tais crenças em nossa população. O bom jornalismo é feito quando se consegue contextualizar a informação relevante.

Isso é feito todo dia: por exemplo, muitas pessoas crêem que colocar uma garrafa PET cheia de água sobre o medidor de luz diminui o consumo. Ao discutir o racionamento e o apagão, no entanto, nenhum jornalista sequer pensou em considerar seriamente tais alegações ou suas implicações para a crise. A direção do JC consideraria isso como injustiça? Atentado contra a democracia? Obscurecimento da consciência da população? Apostaria que não. Mas é bem verdade que eu teria uma boa chance de perder a aposta, a julgar pelos argumentos utilizados pela direção do informativo da SBPC.

Jornal de Livre Opinião

A única coisa que confere maior credibilidade a alegações antievolução é o maior desconhecimento do assunto entre jornalistas e o público em geral. Isso levanta a perturbadora questão: pensa a editoria do JC que efetivamente existe algum debate minimamente científico sobre a procedência do criacionismo?

Se os editores forem coerentes, os leitores do Jornal da Ciência poderão esperar nas próximas edições por opiniões interessantes de praticantes de feng shui e cromoterapia sobre energia, de neogeocentristas e astromantes sobre astronomia, de curandeiros e charlatães sobre medicina. Claro, nesse caso, seria melhor mudarem o nome do informativo – Jornal de Livre Opinião (Ainda que sem Base Nenhuma) ou algo assim – os editores poderiam, no espírito democrático, botar para votação entre os leitores.

Agradeço a José Colucci Jr., Kentaro Mori, Ronaldo Cordeiro e Adão de Souza Jr. E ao editor José Monserrat Filho, pela autorização da publicação do teor de nossa troca de mensagens.

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Mestre em Biologia pela USP