Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Sem pudor, ética ou vergonha

A edição da revista Veja (nº 1.851, de 28/4/04) traz um belo exemplo do que a irresponsabilidade, o preconceito e os interesses econômicos podem fazer com o jornalismo. Assinada por Leonardo Coutinho, o texto ‘Sem fé, lei ou rei’ aborda o conflito entre índios cintas-largas e garimpeiros no interior de Rondônia. Talvez a única função positiva do artigo seja a de exemplo para as escolas de Comunicação – do que não devemos fazer como profissionais ou pessoas. O fato trágico, no entanto, é que ele circule na revista de maior número de leitores do país e sirva apenas para alimentar rixas e distorcer a realidade.

Em primeiro lugar, uma análise puramente jornalística e formal. A reportagem começa com a citação de um cronista português do século 16, Pero de Magalhães Gândavo. O europeu concluiu que os índios não possuíam os fonemas ‘f’, ‘l’ ou ‘r’. Sem isso, eles não poderiam ter ‘fé, lei ou rei’. Assim, estariam fadados à barbárie eterna. Este abre dita o tom do por vir, afinal, o mesmo tipo de dedução lógica e raciocínio foi aplicado pelo autor e editores.

Qualquer veículo de comunicação que se preze tem a apuração como exigência mais preciosa para uma matéria de qualidade. No caso, parece que tudo isso foi jogado fora. Não há, por exemplo, qualquer contextualização histórica do assunto, que já ocupou as páginas dos jornais tantas vezes nos últimos anos. Não cita sequer que no ano passado a Funai retirou cerca de 5 mil garimpeiros da terra indígena e que uma força-tarefa já havia sido criada para acompanhar o caso. Ou que vários organismos internacionais ligados aos direitos humanos também emitiram relatórios sobre a questão e visitaram a área. Outro erro grave: não há nenhuma resposta às críticas, o governo federal e a Funai não foram ouvidos e, muito menos, os índios.

É estranho que o repórter esteja escrevendo diretamente de Espigão d’Oeste e não cite nenhuma fonte local. O investimento da revista em mandar um repórter para lá não acrescenta qualquer novidade além da informação de que caciques têm casas na cidade e andam de carro importado, algo noticiado ao longo da semana pelas TVs. A aldeia, segundo o próprio texto, fica a 20 quilômetros. Por estarem tão próximos e serem protagonistas no assunto não seria uma boa ouvir os moradores dessa aldeia? E os garimpeiros? Também não tiveram vez. Nenhum pôde comentar a perda dos 29 companheiros brutalmente assassinados. Talvez porque eles tenham falado durante toda a semana à imprensa nacional que esteve de olho na região. Além disso, em nenhum momento os editores ou o repórter lembraram de ouvir algum especialista no tema. O único erudito citado é nosso valioso Pero de Magalhães Gândavo e sua teoria.

Povo agonizante

Por outro lado, vários políticos, que também falaram ao público durante esta última semana, voltaram a ter amplo espaço. A lista de aspas conta com governadores e deputado. E nós sabemos que muitas vezes nossos políticos podem ser sensíveis à atuação de grupos de pressão interessados em garimpo, extração de madeira ou ampliação da fronteira agrícola. Mas o ministro da Justiça foi duramente condenado pela Veja ao dizer que ‘todo dia é dia de índio’. Será isso tão condenável partindo do chefe da pasta responsável pela defesa da população indígena brasileira? Será isso um grande erro?

A falta de conhecimento e o preconceito são latentes na matéria. Um exemplo é o trecho seguinte:

‘Os índios são idolatrados. No Brasil do século 21, todo dia é dia de índio. Os selvagens são vistos como defensores da floresta e guardiães de culturas e línguas que precisam ser preservadas a todo custo’.

Usar um termo como ‘selvagem’ é digno dos cronistas portugueses que inspiram o texto. Mais triste, porém, é que um ‘civilizado’ diga que os índios são idolatrados e apele à ironia sobre o real valor da cultura indígena. Uma vez, certo alemão franzino e baixinho, de bigode apertado, também questionou o valor de se preservar a cultura de certa minoria religiosa. Deu no que deu. E quanto à idolatria incondicional, este conceito do índio-pop que nos é apresentado? O bodoque de Raoni compartilha paredes ao lado da Sandy no quarto das adolescentes? É assim?

Certa vez, entrevistei um xavante de Areões, terra indígena próxima a Água Boa (MT). Ele começou a contar-me que sua filha de 4 anos quase morreu no hospital local porque os médicos se negavam a tratar da pneumonia da menina. Aos prantos, ele terminou de me dizer que foi preciso apelar a todas as instâncias, causar uma confusão no hospital e contar com a boa alma de uma enfermeira. Ele vive na expectativa e reza para que sua filha não adoeça de novo. Na realidade, e o tom dessa matéria comprova isso, os índios sofrem talvez o mais forte preconceito racial no Brasil de hoje.

Outro argumento que deveria ter parado na pena dos cronistas portugueses de 500 anos atrás:

‘Donos de 12% de todo território nacional, os cerca de 410 000 índios – fossem a Funai mais competente e o governo menos leniente – não deveriam ter problema algum além do tédio e da obesidade, que já está se transformando em doença nas tribos do Xingu’.

O problema começa com a generalização. Os 410 mil índios brasileiros eram cerca de 100 mil em meados do século passado e retomaram seu processo de crescimento de forma inesperada. Nos anos de 1950 a mentalidade por trás da criação de terras indígenas era dar um espaço para deixar de lado aquele povo agonizante até que desaparecesse. A mesma lógica impera hoje quando questionamos por que dar milhares de hectares a este bando de gente que deve sumir mesmo.

Fatos da vida

As cerca de 200 etnias brasileiras têm realidades totalmente distintas. Algumas mal têm terra para sobreviver, estão à beira do asfalto pedindo esmola ou sobrevivendo de artesanato. Mas os grandes ‘latifúndios indígenas’ – como são descritos no texto – existem principalmente em regiões como a Amazônia, onde há estados como Roraima, que tem 300 mil habitantes e duas vezes a área do estado de São Paulo.

Mas nada melhor que os termos ‘obesidade e tédio’ para nos elucidar mais sobre a intenção do texto. Com toda propriedade a matéria diz que ambos são ‘problemas de saúde no Xingu’. Quem diz isso? A Funasa? Ou Pero de Magalhães Gândavo? A matéria não cita a fonte do dado. Além dos ecos do antigo discurso de que os índios são preguiçosos, nada poderia estar mais distante da realidade. Afinal, o que causa obesidade e tédio é ficar inventando besteiras e comendo hambúrguer na frente do computador.

Em suma, a revista Veja perdeu a oportunidade de aprofundar o tema dos conflitos indígenas, um assunto extremamente complexo e distante do pensamento minimalista e maniqueísta do texto. Talvez seu único mérito – que aparece afogado no meio de tantas distorções, exageros e irresponsabilidades – seja o de afirmar que o índio pode ter os mesmos defeitos como qualquer outro ser humano. Corrupção, chantagem, disputas de poder, traição, ganância etc. são fatos da vida de qualquer comunidade humana, seja ela indígena ou não. Infelizmente, a imprensa brasileira é cada vez mais influenciada por esta nossa face vergonhosa e obscura.

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Jornalista, Equipe Rota Brasil Oeste (www.brasiloeste.com.br)