No artigo ‘Saber do outro mundo’, publicado na revista IstoÉ (edição n° 1.803, de 28/4/2004), sustenta-se que ciência e religião estão prestes a se combinarem. Na minha opinião, uma tal combinação seria até desejável, caso ela significasse – e se restringisse a – uma mudança de postura dos crentes em relação às suas crenças, a assunção do caráter hipotético do saber religioso, já que é desta forma que os homens de ciência encaram o conhecimento científico: ‘Um corpo de afirmações com diversos graus de certeza, algumas muito incertas, outras quase certas, mas nenhuma absolutamente certa’ (Richard P. Feynman). A aceitação do caráter duvidoso de qualquer conhecimento não só não vai de encontro à fé (afinal, somente o não evidente pode ser objeto de crença) como também, ao fazer dos benefícios da dúvida um bem comum, facilitaria muito a convivência entre os vários credos. Acredito que os religiosos mais esclarecidos já se deram conta disso.
Mas será que, de um modo geral, essa busca de aproximar a religião da ciência funda-se numa aprovação da racionalidade do método científico? Penso que não, pelo motivo que passo a expor. Vivemos uma época de revolução científico-tecnológica permanente. Há mais de um século que novos inventos sucedem-se num ritmo alucinante, e não foram poucos os que afetaram significativamente as fundações da sociedade e o modo de vida das pessoas: a máquina-ferramenta, o motor a explosão, a correia de transmissão, o automóvel, o telefone, o avião, a penicilina, a televisão, a bomba atômica, o computador etc. Se há quem afirme com alguma razoabilidade – como os filósofos relativistas e afins – que a ciência é apenas um sistema de crenças entre outros não há, entretanto, como negar que essa crença é sui generis, haja vista sua capacidade de traduzir-se numa tecnologia que se mostra eficaz em qualquer cultura, independentemente de quem a opere.
E se o assunto que trata da relação entre o benefício dessa tecnologia e o seu custo humano e ambiental ainda é uma questão aberta, por outro lado é fato incontroverso que tal tecnologia, para o bem ou para o mal, é o mais eficiente instrumento de poder que o cérebro humano produziu – poder material dos homens sobre a natureza e, também, poder dos homens sobre os homens. Quanto aos sistemas de crença tradicionais, mitológico-religiosos, estes são quase impotentes do ponto de vista técnico (disse ‘quase’ porque é de se considerar o efeito placebo dos seus rituais de cura) e o corpo de intelectuais ligado a essas cosmovisões ressente-se muito da falta desse ‘poder dos homens sobre os homens’ que só a ciência pode oferecer.
Portanto, é pertinente a desconfiança de que não é tanto a racionalidade da ciência o que seduz muitos sacerdotes das velhas e novas cepas, mas sobretudo o seu poder mundano, o fato de a ciência ser, também, força material. Com efeito, se uma sentença moral ou um postulado teológico pode ser rotulado como ‘científico’, então ele pode ser ‘imposto’ pela ‘força’ da sua objetividade, em vez de proposto como artigo de uma subjetiva fé. O estamento sacerdotal tem interesses corporativos, sobretudo de natureza econômica (afinal, vida contemplativa e apostolar também tem metabolismo) para cuja defesa um poder ‘temporal’ é, no mínimo, oportuno.
Pressuposto rejeitado
Esse poder, as religiões o tinham – algumas ainda o detêm, nos bolsões de obscurantismo do planeta – e o exerciam através de Estados teocráticos ou confessionais. Hoje, porém, principalmente no Ocidente, a realidade é outra: os Estados são laicos e a confissão religiosa, um assunto privado. Decerto que há casos de Estados liberal-democráticos (monarquias parlamentares) em que religiões são mantidas como oficiais, mas apenas enquanto liturgia, não mais como doutrina. É, como disse Ernest Gellner, a razão prestando homenagem à fantasia. Uma fração considerável do clero das religiões tradicionais sonha restaurar o confessionalismo e, desta forma, recuperar o seu domínio. Mas, neste mundo atual em que os Estados nacionais cedem cada vez mais força aos organismos de uma sociedade civil globalizada, não haveria uma forma melhor de reaver o poder? Alguns religiosos pensam que sim, e dão a receita: seria só imitar as grandes corporações transnacionais, algumas mais poderosas que muitos Estados, como é o caso da Microsoft, da IBM, da General Motor, da Dow Chemical e outros oligopólios cuja potência repousa numa combinação de capital, trabalho, marketing e, é claro, ‘ciência’.
Um amigo meu, crítico relativista da objetividade científica (segundo ele, ciência e magia são equivalentes), foi fazer um curso de pós-graduação na França. Ao me despedir dele, coloquei em seu bolso um bilhete, para que fosse lido somente quando o avião estivesse em vôo de cruzeiro, sobre o Atlântico. No bilhete estava escrito: ‘Você está a bordo de um produto da revolução científico-tecnológica. Diga agora que a objetividade científica é uma fraude! PS: Cuidado com os efeitos mágicos das suas palavras.’ Ao chegar a Paris ele telefonou para me dizer que o que ele realmente defendia era que ciência e magia são conhecimentos igualmente legítimos. ‘Ah, sim!’
Isso foi antes de 11 de setembro de 2001, quando sequazes do mais recente profeta, também a bordo de aviões, anunciaram pirotecnicamente ao mundo a ‘Boa Nova’. Neste dia, ficou ‘cientificamente comprovado’ que uma combinação supereficaz (e explosiva) de ciência avançada com fundamentalismo religioso é perfeitamente fatível. Há um mundo de questões cujas soluções possíveis não são empiricamente testáveis: questões que tratam do todo, do absoluto, do infinito, da razão-de-ser, do bem e do mal. Como não são testáveis, não são científicas.
Por outro lado, como são questões que preocupam os homens desde a origem da espécie, são legítimas (nem tudo que não é testável é detestável), e delas devem se ocupar a filosofia e a religião. O problema só surge quando um dos mundos lança sobre o outro a sua sombra. Esse interstício sombrio é o mundo daqueles que se utilizam da ciência e de seus produtos, que até mesmo afetam devoção por ela, mas que, no entanto, rejeitam o seu pressuposto central – o princípio segundo o qual ‘existe uma verdade objetiva, embora o conhecimento que temos dela seja incompleto, impreciso, incerto, duvidoso’.
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Analista judiciário, Fortaleza