Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Terminologia médica vs. linguagem jornalística

Não se preocupem os eventuais leitores do presente texto: não pretendo entrar na polêmica sobre ter Ariel Sharon se transformado aparentemente de um general extremado em político centrista ou conciliador, nem compará-lo a Yasser Arafat ou comentar as políticas dos países do Oriente Médio e dos Estados Unidos, tampouco o Islã e o Ocidente.Vou me focar exclusivamente numa das notícias mais divulgadas pela imprensa em todo o mundo, e no Brasil também, que foi a doença que acometeu o primeiro-ministro israelense. Mais ainda: não tanto na doença em si, mas em sua terminologia e na questão da informação médica para jornalistas, em especial no caso em tela, que é exemplo extremamente útil, por ser muito comum.

Resumidamente, Sharon, segundo a imprensa, primeiramente sofreu um pequeno derrame, descrito também como pequena isquemia ou acidente vascular cerebral (AVC); dada a pouca gravidade do caso, ele permaneceu internado pouco tempo – foi detectada como causa uma também pequena anomalia congênita cardíaca, a ser corrigida daí a uma semana através de cateterismo. Um dia antes, porém, o líder israelense entrou em coma. Falou-se em novo e grave derrame ou AVC, ou hemorragia cerebral também, que demandou três procedimentos neurocirúrgicos, manutenção em coma induzido em unidade de terapia intensiva e, ao menos até o término da redação do presente artigo, seus médicos em Jerusalém estavam reduzindo paulatinamente o coma anestésico, e encontravam um quadro mais favorável, com respiração espontânea sem aparelhos e movimentação do lado direito do corpo a estímulos dolorosos, gravíssimo sem dúvida, mas impossível de ser clinicamente avaliado sob anestesia.

Antes, vale lembrar que a última edição da revista Ser Médico, publicação do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, traz matéria com uma síntese de sabatina que médicos fizeram a quatro jornalistas convidados, no anfiteatro da entidade, para debater a relação entre médicos e imprensa. Duas posições me pareceram interessantes, relativas à linguagem médica, e vou reproduzi-las:



1) A jornalista Izilda Alvez, da Rádio Jovem Pan, diz que ‘(…) somos considerados chatos porque repetimos duas ou três vezes a mesma pergunta; fazemos isso porque não entendemos. Isso acontece não só com o médico, mas com outros profissionais. Por que ninguém entende a sentença de um juiz? Porque a linguagem dele também é muito específica. Rádio é imediato. O fato aconteceu, tem que colocar no ar rapidamente a informação precisa, não posso errar. Não somos especialistas em medicina e os senhores não têm a obrigação de falar numa linguagem mais fácil. Mas, se tivessem um pouco mais de tempo para explicar o que aquilo significa, como funciona, o jornalista conseguiria levar ao ouvinte a informação correta, que não deverá ser desmentida no dia seguinte nem causar polêmica. É da entrevista clara e objetiva que nasce a informação correta’.



2) Também sobre o tema se pronunciou a jornalista Cilene Pereira, da revista IstoÉ: ‘(…) já me deparei com médicos sensacionais que me deram entrevistas maravilhosas e quando liguei para pedir mais explicações me atenderam de novo. Em compensação, me deparei com outros que colocaram as coisas de forma tão arrogante e a relação ficou tão complicada que saí da entrevista sem entender nada. Mas tenho que escrever sobre isso e aí vem o erro. É muito triste quando veiculamos uma notícia errada’.

Questão da língua

Há uma série de temas condensados nas declarações acima – evidentemente que há os profissionais da medicina que se comunicam bem, e existem aqueles que se julgam no Olimpo. Também vale lembrar uma tira de quadrinhos de Mafalda, do argentino Quino, quando o pai dela, em férias na praia, se depara no mar com um senhor baixinho e careca e pergunta se ele não o conhecia de algum lugar. O senhor diz que não, e o pai da pequena argentinazinha lhe pergunta a profissão. No quadrinho seguinte ergue-se do mar um obelisco, com entalhes à moda romana, com o senhor baixinho em seu topo, na cabeça uma coroa de louros dizendo em seu balão: ‘Sou médico’.

Em nosso caso especial, a questão é mais ligada à língua portuguesa e à expressão ‘derrame’. O termo derrame é bastante popularizado e mesmo temido, muita gente já o ouviu como notícia ou diagnóstico, e certamente leu essa expressão em inúmeras publicações, ouviu em rádios e viu na televisão. No caso do político de Israel, as mídias brasileiras empregaram preferencialmente a expressão derrame mesmo, algumas vezes secundada por AVC, obstrução de vaso sanguíneo, hemorragia cerebral etc. Mas vejamos esse caso, dividido em suas duas fases clínicas:



1) Na primeira, Ariel Sharon sentiu-se mal, foi levado ao Hospital Hadassa de Jerusalém e foi diagnosticado o dito derrame, causado por entupimento ou obstrução da passagem do sangue ao cérebro, provocado por doença cardíaca congênita simples, que seria corrigida via cateterismo.



2) Uma semana após, Sharon entra em coma e volta ao hospital, com o mesmo diagnóstico de derrame, porém mais grave, necessitando das intervenções cirúrgicas e demais medidas de terapia intensiva, por se tratar de uma grande hemorragia.

Pergunta invariável

Bom, creio ser fácil entender o segundo episódio: houve um sangramento no cérebro, uma hemorragia, e pode-se depreender daí que houve derramamento de sangue. Por outro lado, na primeira vez, ocorreu uma falta do envio de sangue ao cérebro, de causa cardíaca (como poderia ser de várias outras ordens), e a mesma expressão foi utilizada. Mas aí não se falou em hemorragia, então o que foi derramado?

Na prática clínica, isso também ocorre. A expressão derrame costuma estar associada a uma doença grave, e muitas vezes o é mesmo, com risco de vida ou de seqüelas; em outras é de pequena monta. Quando nos defrontamos com os quadros de isquemia, de falta de sangue, seja por obstrução das artérias carótidas por trombos, ou por êmbolos sanguíneos enviados do coração, ou inflamações das paredes das artérias – as vasculites – e assim por diante, costumamos dizer que o paciente sofreu um AVC, pois esta também é uma sigla já razoavelmente difundida. Mas invariavelmente vem a pergunta, por exemplo, de um parente: ‘Mas ele sofreu um derrame?’

A resposta do médico, para ser inteligível e abrangente, deve ser sim. Contudo, não raras vezes, os parentes perguntam: houve então um sangramento na cabeça? Foi causado pela pressão alta ou foi um aneurisma? Ao que se responde que não, não ocorreu hemorragia, mas sim uma obstrução ou ‘entupimento’ de um vaso. E várias vezes a conversa continua: mas se não houve hemorragia e sim falta de sangue no cérebro, o que foi derramado?

Stroke e ataque

Essa é a mesma situação de Ariel Sharon: em uma semana, faltou sangue e o diagnóstico foi derrame. Na outra, uma severa hemorragia cerebral, e o termo usado foi o mesmo. É confuso mesmo, e a culpa não está na divulgação dos fatos pelos médicos israelenses ou pela imprensa de língua anglo-saxônica, mas sim num caso típico de tradução literal que leva às confusões citadas, seja na clínica do dia-a-dia, seja na imprensa, do termo derrame.

As dúvidas que pacientes, leitores ou jornalistas venham a ter são inteiramente pertinentes, e, até onde, nos vários anos em que exerço a neurologia como especialidade, não consegui descobrir com exatidão o nascedouro dessa confusão. Mas é fácil detectar sua causa.

Em inglês, a fonte principal da literatura médica e de informação, as doenças vasculares cerebrais, ou AVCs, são chamadas de stroke [Nota do OI: ‘pancada, chicotada; ataque, derrame (cerebral), apoplexia; carinho; estilo de natação; pincelada’, segundo o dicionário Babylon]. Pois bem, como já se consegue deduzir, existem os AVCs isquêmicos, devidos à falta de sangue, e abreviados como AVCIs, e os AVCs hemorrágicos, o AVCHs. Um fato importante do ponto de vista diagnóstico em neurologia, em especial em casos de emergência, é o estabelecimento de uma dada alteração neurológica em relação ao tempo: se a evolução durou muitas horas, dias, semanas, dificilmente será um AVC. Por outro lado, os quadros súbitos quase sempre são classificados como AVCs ou, na língua de Sheakespeare, stroke. Qualquer dicionário de inglês vai definir stroke como um evento súbito, inesperado, e muitos o colocam também como sinônimo de AVC. Por outro lado, quando consultamos os dicionários da língua pátria, origem portuguesa ou brasileira, a expressão ‘derrame’ tem como base o stroke provindo do inglês, e significa, dependendo da obra consultada, doença vascular cerebral, AVC, isquemia ou hemorragia. Como não se confundir frente a isso?

Enxaqueca ou migrânea?

Provavelmente, em algum ponto do passado, sabendo-se da terminologia inglesa stroke para doenças vasculares cerebrais, alguém imediatamente juntou todos os casos numa ó expressão, o tal do derrame. Ocorre que em inglês a expressão não designa primariamente um quadro médico, mas sim algo que ocorreu de maneira súbita, inesperada, um ataque. E acertadamente, por na maioria das vezes os AVCs serem realmente de instalação inesperada, em inglês não há maiores problemas na denominação. Aliás, a principal revista médica internacional especializada em doenças neurovasculares, isquêmicas ou hemorrágicas denomina-se exatamente Stroke, publicação da American Heart Association.

Na tradução apressada e literal para o português, a mesma expressão, chamada então de derrame, passou a designar os quadros de isquemia e os de hemorragia, sendo perfeitamente compreensível o fato de alguns ficarem pasmos ao saberem que num AVC ou derrame nada se derramou, especialmente sangue, e que houve, sim, foi a falta do sangue…

Como já assinalei, não há como atribuir a ‘culpa’ desse incidente de tradução a alguém. Por outro lado, a palavra derrame se tornou tão comum que pretender mudá-la para alguma outra coisa, mesmo para o até já utilizado AVC, é temerário: é como querer mudar do dia para a noite o nome de um tradicional time de futebol ou logradouro. De maneira similar, há alguns anos, começou também na neurologia uma discussão semelhante: uma das mais comuns formas de dor de cabeça, ou cefaléia, é a enxaqueca. Contudo, em quase todos os idiomas, a doença é identificada como migraine, migranée e assim por diante. No espanhol usa-se jaqueca, que provém de um vocábulo árabe que significa ‘dor de um lado só da cabeça’, e em português se transformou em enxaqueca. Puristas argumentaram que, nas publicações médicas em português, quase ninguém saberia do que se trata um dado artigo científico com esse termo, propondo, num neologismo à moda anglo-saxônica, chamar essa forma de dor de migrânea. Ora, alguns médicos a usam, outros não, mas os pacientes dificilmente vão aceitar a mudança do termo enxaqueca, de tão popularizado que é.

Uso corrente

Como corrigir isso? Essa não é a pergunta certa. Deve mesmo ser corrigida a expressão derrame, de tão popular que é? Não seria mais fácil deixar a erudição de lado e explicar, como no caso israelense, que ocorreram dois derrames, um isquêmico e outro hemorrágico? Essa é a minha posição, e ela se baseia, dentre outras fontes, na tese de doutoramento em Medicina, de 1968, de Idel Becker (naquele tempo não havia mestrado e doutorado; era ainda a época da cátedra e das teses de doutoramento e livre-docência). A tese, apresentada perante a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e aprovada com nota máxima, denomina-se ‘Nomenclatura Biomédica no Português do Brasil’. Ressalte-se que o autor, já falecido, além de médico, foi também professor de línguas neolatinas, anatomista, pertencente às comissões nacionais e internacionais de nomenclatura anatômica, professor da Faculdade de Odontologia da USP e do Mackenzie, enxadrista e pugilista!

Essa figura multifacetada, dotada ainda de um notável senso de humor e de uma vasta cultura, concluiu sua tese, após a aprovação publicada pela Livraria Nobel, com uma reflexão final altamente relevante:

A nomenclatura – como a própria linguagem – é arbitrária e convencional. Aquilo em que convêm, aquilo que se combina e se ajusta, que é tácita ou expressamente aceito por todos, e portanto se usa – é o ‘certo’, é a lei.

Cita ainda o autor francês Saussure:

Por ser arbitrário é que o signo não conhece outra lei senão a da tradição, e por fundar-se na tradição é que ele pode ser arbitrário.

Em sua tese, Becker disserta sobre várias expressões biomédicas como exemplo, com a erudição de um literato, sempre apontando para o que seria o correto filologicamente e o de uso corrente, preferencial, por ser democrático.

Sem palpite

Então, derrame, acredito, deve ficar como derrame mesmo, mas com a ressalva de se dizer se foi por isquemia ou hemorragia. Parece que aos poucos está se preferindo a sigla AVC, bem mais benéfica lingüisticamente. Mas derrame não é nenhum crime lesa-idioma.

Após essa árida questão, vou entrar na especulação sobre o que deve ter acontecido a Ariel Sharon: é muito arriscado comentar qualquer coisa a distância, sem conhecer o caso, apenas com dados de imprensa, mas o tempo dirá se acertei ou não – aliás, em quadros vasculares, jamais deve o médico dar prognósticos definitivos quanto a morte ou recuperação certeiras, ou mesmo seqüelas; são quadros evolutivos, e muitas vezes surpreendem a todos. Então, acredito que Sharon deve ter uma anomalia congênita do coração conhecida como forame oval patente, que deveria ter se fechado na infância, mas que em muitas pessoas continua aberta. Pode não acontecer nada com o portador dessa abertura cardíaca, mas em algumas pessoas ocorre a formação de um trombo, também conhecido como coágulo, que se desloca para os vasos cerebrais, interrompendo o fluxo de sangue.

A coisa deve ter sido discreta, a circulação restituída ao normal rapidamente e sem seqüelas, daí ele ter tido alta e ser marcada para a semana seguinte a correção do defeito cardíaco por cateterismo. Contudo, acredito que para prevenir outro episódio naquela semana, deva ter sido dada a Ariel Sharon alguma medicação para dificultar a coagulação do sangue, para deixá-lo mais fluido e com menos chance de causar outra obstrução até a correção no cateterismo. Ocorre que algumas dessas drogas devem ser utilizadas muito rigorosamente, com controle laboratorial, dosagem e horários idem, e o premiê israelense foi descansar em seu rancho no deserto. Sabe-se lá o que foi dado a ele, mas se foi utilizado algum medicamento com as propriedades acima, há uma grande probabilidade de ter tido um efeito ‘a mais’, causando a séria hemorragia, que é o quadro presente. Qual será o futuro de Sharon, do ponto de vista médico –, que está ligado ao seu novo partido Kadima, à política israelense, do Oriente Médio e internacional? Aí não há como dizer alguma coisa, apenas esperar. E não serei eu a arriscar qualquer palpite nessa questão, apenas acompanhar pela imprensa a evolução dos fatos.

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Médico, mestre em Neurologia pela Unifesp, ex-conselheiro do CRM de São Paulo