Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Tradução e transmutação

Os sítios multilíngües de notícias podem ser instrutivos às vezes.

Há um bom tempo a versão em português da CNN nos acrescentava à lista de seres extintos na transição Cretáceo-Terciário e incluía os dinossauros no grupo dos seres humanos. De quebra botava o Sol em um sistema binário de estrelas. Nenhuma dessas bobagens constava na versão original da notícia. Cheguei a comentar sobre isso neste próprio Observatório [remissão abaixo].

A CNN não mantém mais a sua versão em português, embora a versão em inglês ainda esteja no ar.

Agora temos um outro caso de transmutação da versão. No sítio da BBC, uma notícia comenta um achado de que um número muito maior de britânicos do que o previamente estimado é portador da proteína associada à vCJD – variante do mal de Creutzfeldt-Jakob (variant Creutzfeldt-Jakob disease) –, doença semelhante à que acomete outros animais, como os bovinos, a encefalopatia espongiforme bovina (BSE, bovine spongiform encephalopathy), mais conhecida como mal da vaca louca.

O título em inglês é: ‘Thousands may be harbouring vCJD’ (‘Milhares podem portar a vCJD’, http://news.bbc.co.uk/1/hi/health/3729901.stm) – o que pode soar um tanto enigmático para o público leigo. Na versão em português, virou: ‘Milhares de britânicos ‘podem estar com o vírus da vaca louca’’ (http://www.bbc.co.uk/portuguese/ciencia/story/2004/05/040521_vacaloucarc.shtml), o que soa provavelmente mais familiar, mas é altamente enganador.

Primeiro, vCJD, embora muitas pesquisas associem à BSE (e é a celeuma maior que levou muitos países a restringirem a importação de carne, especialmente de regiões em que se detectou a BSE) não é o mesmo que o mal da vaca louca. Sendo menos severos podemos tomar essa liberdade como passável ou até mesmo justificável – ao menos do ponto de vista jornalístico.

Segundo, surge na versão brasileira o que não é mencionado na versão original – vírus.

Grande controvérsia

Essa alteração não se restringe ao título, mas se estende ao corpo do texto.

‘Researchers at Plymouth’s Derriford Hospital and the CJD Surveillance Unit tested 12,674 appendix and tonsil samples – three showed signs of vCJD’.

Virou:

‘Pesquisadores do Hospital Derriford, na Grã-Bretanha, testaram 12.674 amostras de apêndices e amígdalas. Três mostraram sinais do vírus vCJD, a variante humana da doença’.

‘There is still much to learn about vCJD and presence of the protein in these tissue samples does not necessarily mean that those affected will go on to develop vCJD,’ said lead researcher David Hilton.’

Transformou-se em:

‘‘Existe muita coisa para ser aprendida sobre o vírus e a presença de proteínas nesses tecidos não significa necessariamente que os afetados vão desenvolver a doença’, disse David Hilton, que comandou as pesquisas’.

‘Professor James Ironside of the National CJD Surveillance Unit in Edinburgh said the findings suggested some people could carry the disease without ever showing any symptoms’.

Transmutou-se para:

‘James Ironside, da Unidade de Vigilância Nacional de vCJD, disse que as descobertas sugerem que algumas pessoas podem carregar o vírus sem nunca apresentar nenhum sintoma’.

É compreensível que ‘National CJD Surveillance Unit’ tenha virado ‘Unidade de Vigilância Nacional de vCJD’ – um v a mais que entrou por engano.

Mas de onde surgiu o vírus? Traduttore, traditore? Ou teria sido infectada pela versão publicada na, quem diria, CNN? ‘Thousands may carry mad cow virus’ (http://www.cnn.com/2004/HEALTH/05/21/britain.cjd.reut/). (Embora no texto ‘vírus’ mude para ‘infective agent’, ‘agente infeccioso’.)

Verdade que se suspeita da participação de um vírus como agente etiológico, mas também há forte suspeita de que o agente seja um príon (Variant Creutzfeldt-Jakob disease: www.who.int/mediacentre/factsheets/fs180/en/).

Enfim, há uma grande controvérsia ainda sobre a causa da vCJD. Não vejo justificativa para um texto jornalístico dar a entender como certo que a causa seja mesmo um vírus.

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Mestre em Biologia