As imagens e as palavras não são suficientes para descrever com precisão a devastação sofrida pela região do Golfo do México, após a passagem do furacão Katrina, no final de agosto. O foco da cobertura da mídia se volta para Nova Orleans, enquanto cidades menores, como Biloxi e Gulfport, duramente atingidas, passam para um segundo plano.
De qualquer forma, as imagens das TVs internacionais mostram cenas vistas apenas em países pobres do Terceiro Mundo: cadáveres boiando nas ruas alagadas, milhares de pessoas vagando palas partes mais altas das cidades à espera de socorro, mais os saques dos desesperados por uma garrafa de água ou comida, incêndios e tiroteios, um clima de revolta popular contra os burocratas de Washington.
A falta de energia elétrica em uma vasta área afetada pelo Katrina, o colapso dos sistemas de água potável, a terrível escassez de comida, a falta de gasolina e seu racionamento em várias partes dos Estados Unidos mostram a fragilidade da superpotência diante da Natureza. E não foi por falta de aviso: desde janeiro de 2001, a comunidade científica internacional, reunida em Xangai, já alertava sobre a rapidez do aquecimento do planeta, enquanto os governos não queriam, ou não conseguiam, reduzir a emissão dos gases de efeito-estufa.
O Grupo Intergovernamental sobre as Mudanças do Clima, criado pela Organização das Nações Unidas, dizia, à época, que era necessário preparar-se para a elevação do nível dos oceanos, para a mudança no regime de chuvas, afirmando que ‘as inundações podem desabrigar dezenas de milhares de pessoas na Índia, na China ou em Bangladesh’.
A reunião dos cientistas em Xangai reforçou a necessidade de aplicar, imediatamente, as regras do Protocolo de Kyoto, de 1997, para reduzir as emissões dos gases causadores do efeito-estufa. O aquecimento global, diziam os especialistas, é um fato comprovado: as temperaturas não param de subir, em todo o mundo, e os anos 1990 foram os mais quentes do século 20, em especial 1998, o ano mais quente desde 1861. E o século 20 foi o mais quente em todo o milênio.
Consciência pesada
Na quinta-feira (1º/9), editorial do St. Louis Post-Dispatch recordava os estudos – ignorados pelas autoridades – preparados por especialistas da FEMA (Federal Emergency Management Agency, ou Agência Federal de Gerenciamento de Emergências). Joe Allbaugh, então diretor da FEMA, alertava sobre a possibilidade de um furacão tão devastador como o Katrina atingir a área de Nova Orleans e previa as medidas necessárias para evacuar as pessoas e diminuir ao máximo os efeitos dos ventos.
Mas nada funcionou: os relatórios com os alertas foram esquecidos em alguma gaveta em Washington e, na hora de evacuar os flagelados, não havia coordenação nem meios suficientes para atender as pessoas – as mais pobres e em sua esmagadora maioria negras, sem os meios de locomoção para atender às ordens de abandonar a cidade pouco antes da chegada do Katrina.
Também em 1º de setembro, o Philadelphia Inquirer descreve as cenas inimagináveis para eles, orgulhosos cidadãos da até então superpotência dominante: ‘Essas imagens chegaram geralmente da África, Ásia ou Europa Oriental. Não dos Estados Unidos. Agora, o exótico chegou aqui em casa: as vítimas estão lutando, como em anos recentes os africanos, asiáticos e europeus do Leste: procurando assegurar um grau mínimo de estabilidade. Os EUA não estão imunes ao poder destrutivo da natureza’, afirma o editorial, para concluir:
‘As entrevistas com as vítimas do litoral do Golfo do México parecem até que foram enviadas de algum lugar muito, muito distante; e lembra, mesmo, a cobertura da mídia das cidades atingidas, em dezembro 2004, pelo tsunami do Oceano Índico’.
E a consciência pesada de alguns americanos vai além, nestas comparações: o governador Haley Barber, do estado do Mississippi, após visitar as áreas destruídas no condado de Harrison, afirmou aos jornalistas estar ‘diante de um desastre como o de Hiroxima’, há exatos 60 anos depois que os EUA liquidaram com bombas atômicas duas cidades japonesas para mostrar seu poderio ao mundo e, em especial, à rival de então, a União Soviética.
Contribuição nefasta
Mas a devastação do Katrina é apenas uma amostra das coisas que estão por vir, em um planeta superaquecido. Os climatologistas prevêem que a severidade e a freqüência desses fenômenos devem aumentar com o aquecimento global. As calamidades de 2005 estão na lembrança de todos: incêndios devastadores em Portugal, Espanha, Grécia; seca prolongada em diversos países da África, seca de dois anos em Cuba seguida de chuvas torrenciais; inundações na Índia; tufões no Japão e na China, ciclones tropicais no Brasil (em especial no litoral do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, e isso em pleno inverno com temperaturas absurdamente elevadas).
Segundo o relatório da organização MediaLens, de sexta-feira (2/9), resta pouco tempo para evitar o que já se chama de ‘caos climático’. Em apenas uma década, o planeta pode atingir ‘o ponto de não retorno’, segundo afirma Geoffrey Lean no artigo ‘Apocalypse now: how mankind is sleepwalking to the end of the earth’, publicado no diário Independent de Londres, em 6/2/2005.
As estimativas da ONU vêm ao encontro das previsões mais sombrias: o aquecimento global já provocou na década passada cerca de 500 mil mortes, afetou profundamente a vida de 2 bilhões e 500 milhões de pessoas ao redor da Terra e gerou perdas econômicas de mais de 690 bilhões de dólares, segundo o jornalista Ted Glick em sua coluna pela internet Future Hope, de 17/8/2005.
O que está comprovado é que o crescimento econômico ‘infinito’, tão ao gosto dos políticos e economistas capitalistas neoliberais, choca-se, diariamente, com a realidade de um planeta ‘finito’, com recursos naturais – como o petróleo ou o carvão, por exemplo – que não são renováveis. Além da poluição e sua contribuição nefasta para o efeito-estufa e o aquecimento global, nunca é demais repetir: petróleo e carvão uma vez extraídos não dão duas safras.
Debaixo d’água
Em julho deste ano, na cúpula do G-8 em Gleneagles, Escócia, o tema do aquecimento global foi levantado. Mas os líderes dos países mais ricos do mundo não tiraram nenhuma conclusão factível sobre o tema. Os Estados Unidos, que nunca aderiram ao Protocolo de Kyoto, continuam a viver ‘ensopados de petróleo’. O veterano ecologista Mayer Hillman apelou para ações urgentes em favor da humanidade que ‘possam impedir que os líderes mundiais entreguem um planeta moribundo à próxima geração’.
O jornalista e documentarista Michael Moore, em carta aberta ao presidente George W. Bush, datada de 2/9/2005, depois de descrever o que viu pessoalmente da tragédia nos estados da Louisiana, Mississippi e Alabama, após a passagem do Katrina, e criticar a demora e a burocracia para ajudar as vítimas, encerra assim o seu texto:
‘Não, Sr. Bush, não é sua culpa que 30% da população de Nova Orleans vivem na pobreza e dezenas de milhares de pessoas não tenham os meios para abandonar a cidade. Afinal, são negros! Imagine deixar pessoas brancas esperando em seus telhados por cinco dias. (…) A questão da raça não tem nada – NADA – a ver com isso. (…) Sr. Bush: encontre alguns de nossos helicópteros militares e mande eles para lá. Faça de conta que as pessoas de Nova Orleans e do litoral do Golfo estão perto de Tikrit (Iraque)’.
No domingo (4/9), as cenas de miséria e humilhação continuavam chegando pelas TVs internacionais. Na França, o canal estatal dedicou a mesa redonda semanal ao Katrina e seus efeitos. Jornalistas baseados em Paris, de vários países, alertaram para a possibilidade de novos furacões na região de Nova Orleans nas próximas semanas. Afinal, a temporada de furacões termina apenas no final de novembro.
As imagens da realidade, agora, se fundem às da ficção: lembram do filme O dia depois de amanhã, de Roland Emmerich? Alguns jornalistas no local da devastação já fizeram essa comparação. O filme retrata a chegada de uma nova Era do Gelo à Terra, a continuar o presente aquecimento global. É só trocar as imagens de uma Nova York debaixo d’água pelas de Nova Orleans inundada, hoje. A realidade sempre vai superar a ficção.
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Jornalista, integra a Comissão de Ética do Sindicato dos Jornalistas do Rio Grande do Sul