Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Urânio e autonomia nacional

A imprensa brasileira reproduziu partes do material publicado pelo jornal americano The Washington Post no domingo sobre a recusa brasileira em admitir a inspeção da produção de urânio enriquecido em uma planta para esse fim, localizada em Resende (RJ). O Estado de S. Paulo dedicou sua manchete principal e duas páginas internas ao assunto na edição da segunda-feira (5/4).

Fora de uma contextualização histórica, o enfoque dado pelo Estadão pode levar um leitor menos atento a concluir que o Brasil está a ponto de mergulhar numa aventura nuclear com disposição de produzir uma bomba atômica doméstica. A questão não é bem essa, ainda que o assunto seja complexo e impossível de ser elucidado em poucas linhas.

Talvez um fato histórico sirva de referência para se estabelecer uma série de relações e, dessa maneira, localizar a posição brasileira envolvendo o enriquecimento de urânio para uso pacífico. Por exemplo, em usinas nucleares, como as que operam neste momento em Angra dos Reis (RJ).

Ao fim da Segunda Guerra Mundial, o almirante Álvaro Alberto, fundador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), sonhou e se empenhou profundamente com o projeto de o Brasil oferecer recursos minerais e, em troca, receber ajuda tecnológica por parte dos Estados Unidos, em programa nuclear consistente com suas necessidades.

Em resumo, pode-se dizer que, por caminhos nem sempre ortodoxos, os Estados Unidos ficaram com os recursos minerais (monazita, fosfato natural de cério, lantanio e outros lantanídeos contendo tório etc.) e o Brasil nunca recebeu a ajuda prometida. Ao contrário disso, o que aconteceu foi a remoção de Álvaro Alberto do CNPq que, à época, chamava-se Conselho Nacional de Pesquisas. A remoção do almirante foi resultado de pressão americana num contexto de chantagens diplomáticas, episódio não muito conhecido do grande público e que a grande imprensa tampouco se preocupa em levantar para oferecer a devida contextualização histórica.

O Brasil assinou o tratado de não-proliferação de armas nucleares (TNP) e, além disso, a Constituição prevê o uso de energia nuclear no país exclusivamente para fins pacíficos – o que inclui de produção de energia elétrica a oferta de radioisótopos para tratamento de câncer, bombardeio de sementes e alimentos e uma série de outras tecnologias voltadas para a atividade econômica.

O que o Brasil não fez e nem tem pressa de fazer é assinar um protocolo adicional sobre inspeções da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), o que permitiria a visita, de surpresa, de inspetores da instituição que, com o protocolo adicional assinado, teriam acesso irrestrito a toda e qualquer instalação de desenvolvimento nuclear no Brasil.

O Brasil participou das discussões para o estabelecimento desse protocolo adicional, mas, por motivos que vão de interesses comerciais imediatos a razões estratégicas de futuro, além de um contexto geopolítico atual, tem boas e sólidas razões para não ter pressa.

Tempos belicosos

O interesse comercial está no fato de o governo brasileiro desconfiar da visita dos inspetores que, na realidade, poderiam estar mais interessados no caminho tecnológico que o país desenvolveu para o enriquecimento do urânio do que no formalismo do compromisso teórico com a não-proliferação de armas nucleares.

O destaque dado pelo Estadão, embora nenhum dos textos diga isso explicitamente, tacitamente deixa entreaberta a possibilidade de estarmos entrando numa aventura militar.

O Brasil, de fato, acalentou sonhos de ter sua bomba atômica durante a ditadura militar, deflagrada num 1º de abril de 40 anos atrás e que não deixou nada de dignificante para a história. O percurso de um delegado-repressor, como foi a repugnante figura de Sérgio Paranhos Fleury, é só uma metáfora desse tempo de horror. Os jovens de hoje têm, ao menos, o benefício de viverem livres dessas coações, traições e brutalidades impensáveis em sociedades minimamente estruturadas.

A tal bomba atômica acalentada pelos generais e seus subalternos com as idéias delirantes de ‘Brasil Grande’ tinha como alvo principal a Argentina.

Quase não se percebe mais a tensão que existia à época da construção da hidrelétrica de Itaipu (que pode inundar inteiramente Buenos Aires, no caso de uma abertura com esse objetivo) e mesmo os primeiros passos do Brasil para se integrar ao programa antártico. Essas iniciativas estiveram relacionadas ao ‘expansionismo brasileiro’.

Os militares tentaram a todo custo desenvolver um míssil para transportar uma ogiva militar, e para isso usaram o programa espacial como fachada. Um dos pais do foguete brasileiro, o Veículo Lançador de Satélites (VLS), cujo protótipo incendiou-se em agosto do ano passado em Alcântara, Maranhão, foi o brigadeiro (reformado) Hugo Piva. Temperamento afável, direto e envolvente por sua inteligência e precisão, Piva, que negociou venda de armas com Saddam Hussein, nos anos 1980, nunca escondeu o óbvio: que um foguete sem estágios, a partir do VLS, poderia perfeitamente conduzir uma ogiva nuclear.

Quando falou de uma possibilidade de o Brasil construir uma bomba atômica, ao assumir o ministério da Ciência e Tecnologia, o ex-ministro Roberto Amaral provocou pequeno sismo na imprensa internacional, especialmente nos Estados Unidos.

Nestes tempos belicosos e nada confiáveis, no entanto, talvez um dos ingredientes para a paz seja alguma força de dissuasão. Ao longo da história humana, e mesmo entre os animais, esse princípio demonstra funcionar com eficiência. Essa consideração não significa a defesa de um programa armamentista desenfreado. Os acontecimentos não se dão, necessariamente, pelos extremos.

Decisões estratégicas

Muitos podem argumentar que, embora a Constituição proíba o desenvolvimento de uma bomba atômica interna, ela pode ser reformada como de fato tem sido durante a história da República no Brasil. Esses observadores teriam razão neste ponto, mas há outras considerações a fazer. Uma delas está ligada aos interesses comerciais.

Os norte-americanos, interessados, ou levados a se interessarem por lançamentos na base espacial de Alcântara (concebida num contexto de guerra fria e que agora passa por desencontros complexos) exigiram, num acordo feito com o Brasil, que técnicos brasileiros não tivessem acesso aos artefatos que podem vir a lançar de Alcântara.

A justificativa para isso?

Receio de espionagem industrial.

E espionagem industrial é o mesmo argumento que o Brasil utiliza agora para vetar a entrada de inspetores interessados em conhecer as centrífugas para enriquecimento de urânio em Resende. Alguns especialistas em energia nuclear argumentam que essa metodologia não é relevante e que essa não deve ser a razão para o Brasil vetar o acesso de inspetores nessas instalações. Ainda assim, sobram razões de natureza estratégica e de autonomia.

No contexto internacional, o governo conservador de George W. Bush faz movimentos no tabuleiro internacional envolvendo peças como Israel, Paquistão e Índia, países que dispõem de armas nucleares.

Em fevereiro passado, Bush fez pronunciamento definindo que a partir de então ‘não deveria haver mais transferência de tecnologia para países que não tenham planos complementares e totalmente operacionais de enriquecimento de urânio’, nas palavras do correspondente do Estado de S.Paulo em Washington, Paulo Sotero, citando o embaixador brasileiro nos Estados Unidos, Roberto Abdenur.

Evidentemente que não podemos deixar que decisões estratégicas ao Brasil sejam definidas por dirigentes de outras nações. E, se Bush tem relações especialmente com Israel e Paquistão na atual conjuntura internacional, esses problemas não dizem respeito, ao menos diretamente, ao Brasil.

A realidade é exótica

O material do Washington Post reproduzido pelo Estadão traz paralelos com a Coréia do Norte e o Irã, ainda em questões militares. Mas a posição do Brasil não tem relação com esses países, e alinhá-los, como faz o ex-negociador americano James Goodby, envolve questões que vão da má-fé à paranóia norte-americana com o que chamam de ‘segurança interna’, relacionada ao contexto internacional.

Os últimos acontecimentos, envolvendo de pretensas armas biológicas no Iraque, até hoje não encontradas, a manipulações de informação na Inglaterra pelo primeiro-ministro Tony Blair (não nos esqueçamos dos dados plagiados da tese de um estudante de pós-graduação utilizados pelos governos da coalizão para justificar o bombardeio do Iraque) e mesmo a tentativa frustrada de trapacear a sociedade espanhola, pelo governo de Aznar, há poucas semanas, não formam um ambiente confiável para decisões rápidas e insuspeitas.

Ah, sim. Existe uma longa e exótica história de invasão sistemática de território brasileiro na Amazônia (especialmente nas proximidades das Guianas) por agentes e aventureiros americanos disfarçados de missionários evangélicos interessados na alma desamparada dos índios brasileiros. Mas esse é um assunto para outra oportunidade. Os que não acreditam nisso devem saber que, nos anos 1980, missionários evangélicos invadiram território brasileiro sem nenhuma permissão e fizeram contato com os índios zoés, a uns 400 km a noroeste de Santarém, no coração fechado da floresta. Só saíram de lá depois de terem provocado uma enorme quantidade de problemas, entre eles a morte de índios por microrganismos que seus sistemas imunológicos não conheciam.

Os evangélicos foram expulsos pela Funai. Prometeram que um dia voltariam. Pode parecer descabido relacionar índios a combustível nuclear. Mas a realidade, como já disseram Isaac Asimov, Charles Arthur Clarke e Stanislaw Lem, entre outros, quase sempre é mais exótica que a ficção.