Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

“O meu amigo hindu”

Doença, dor, morte são temas difíceis de encarar quando os personagens principais somos nós mesmos e, talvez por isso, as capas de maior sucesso nas revistas semanais sejam as de rubrica Saúde. Vendem que nem pão quente, as pessoas leem a evolução da ciência com distanciamento e por precaução. Mas é na arte que elas elaboram, superam, sublimam, entendem e aceitam a representação daquilo que mais temem. Principalmente quando a questão é tratada com delicadeza, coragem e o talento de Hector Babenco como em Meu Amigo Hindu, estreia marcada para 3 de março. Abriu a última Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e, não por acaso, o filme trata do amor do cineasta pelo cinema.

Willian Dafoe / Foto www.cinefestivais.com.br

Willian Dafoe / Foto www.cinefestivais.com.br

O impacto é ainda mais forte porque o filme tem fortes toques autobiográficos e quase cruéis com o personagem que se descobre com um câncer linfático, a poucos meses da morte. A não ser que se submeta e um doloroso transplante de medula nos Estados Unidos, o que ele aceita. Nenhum subterfúgio para a dor que o quase cadavérico ator Willem Dafoe, representando Babenco, sente, e só supera cantando ou tentando aliviar a dor do menino hindu internado a seu lado.

O olhar de Babenco-Dafoe é implacável, sem qualquer traço de autocomplacência. Não foge de nada, nem perdoa nada, a impotência, o abandono da mulher, as brigas da família na morte do patriarca, a ganância do irmão para doar (vender) órgãos para o transplante que salvaria sua vida, a depressão, a solidão, o comportamento dos amigos, o prenúncio da morte.

A mulher com quem ele vive há anos, e só decide se casar quando a doença aumenta, é vivida por Maria Fernanda Cândido, que não aguenta o sofrimento, a devastação e a angústia ali ao lado. No pior momento, ela o abandona. A morte vem na forma de funcionário de multinacional ( ou de caixeiro viajante) na figura de Selton Melo. Vida e arte, morte e sobrevivência, personagem e ator, o filme é um soco no estômago pela confusão que cada um de nós passa ao tentar driblar aquilo que, como no filme O Sétimo Selo de Ingmar Bergman, não nos deixará escapar. A morte. Mesmo que a parca nos deixe ganhar uma ou duas partidas de xadrez, no final ela vence sempre.

O paciente hindu / Foto www.poseseneuroses.com.br

O paciente hindu / Foto www.poseseneuroses.com.br

O amigo hindu é um menino que realmente existiu e que dividia a sala da quimioterapia com ele, para quem Babenco contava histórias, imaginárias ou não. Mas o final dele, que na ficção é uma chave, o cineasta não soube. Valeu como um dos momentos mais comoventes.

A meditação sobre nossa condição humana afinal tem um revertério sobre aquele familiar lado do perdedor. O filme começa sombrio e termina solar. Uma reconciliação com a família, uma súbita vitória do personagem, porque a vida também tem dessas coisas. Ao conhecer a última mulher, Bárbara Paz, que na verdade é a atual mulher de Babenco (29 anos mais nova, já tendo vivido muitas separações com ele), há uma injeção de força vital simbolizada numa cena em que a atriz dança Singing in the Rain. É a celebração da vida e, ao mesmo tempo, um ato de amor ao cinema. Voltar à vida era voltar a filmar.

Cantando para espantar a dor

Parte do filme se passa num Hospital americano representando Seattle onde Babenco, que conviveu 12 anos com um câncer, fez o transplante alógeno da medula – e onde muita gente se tratou, como o cantor espanhol Jose Carreras e o cientista e escritor americano Carl Sagan. Mas as cenas são do Hospital Sírio e Libanês onde Babenco também passou longas temporadas internado.

Babenco já dirigiu grandes atores nacionais e internacionais, desde Reginaldo Faria em Lucio Flávio , Passageiro da Agonia (1977), Marilia Pêra em Pixote, A Lei do Mais Fraco ( 1980),William Hurt e Raul Julia em O Beijo da Mulher Aranha ( 1984, Hurt ganhou o Oscar de melhor ator), Jack Micholson e Meryl Streep em Ironweed (1987), Tom Waits em Brincando nos Campos do Senhor (1990), Norma Aleandro em Coração Iluminado ( 1998), Wagner Moura em Carandiru ( 2003), Paulo Autran e Gael Garcia Bernal em O Passado (2007).

Oito anos sem filmar, há dez, quando eliminou do organismo as células cancerígenas, ele contou que no hospital de Seattle cantava tudo o que lhe vinha à cabeça. Passou quase 40 dias cheio de tubos e sem se alimentar, mas precisava superar a dor. “Passei meses internado e cantando, Gershwin, Tom, Vila Lobos, Beethoven”. Mas o personagem Diego interpretado por Dafoe, que também canta no hospital em momentos drásticos, é um cineasta, que só pensa em filmar, a saída do inferno é filmar.

Hector Babendo (esq), Barbara Paz e William Dafoe / Foto www.radiopopfm.com

Hector Babenco (esq), Barbara Paz e William Dafoe / Foto www.radiopopfm.com

Dafoe está na mira de Babenco desde Coração Iluminado. Em 1988 Babenco era júri do Festival de Veneza quando passou A Última Tentação de Cristo (Martin Scorcese), Dafoe no papel principal, de Cristo. Foram jantar, ficaram amigos. Quando Dafoe veio atuar em 2014 no SESC paulista com Mikhail Baryshnikov na peça de Bob Wilson, The Old Woman, os dois se reencontraram e, dessa vez, as datas coincidiram. Dafoe rabiscou num guardanapo as datas que teria livres, Babenco verificou que eram as mesmas que ele teria para filmar, a tradução do roteiro para o inglês chegou a tempo de pegar o ator ainda em São Paulo e uma cópia foi deixada no seu hotel. Ele ainda passeou pelo Rio alguns dias com a mulher, e topou. Os astros ajudaram. Dafoe tem 80 filmes na carreira, fora os papéis interpretados na televisão.

Filmado em parte no polo de Paulínia, Babenco diz que o filme foi rodado com economias pessoais e de amigos. O argentino de origem judaica ucraniana e nacionalizado brasileiro lastima a política cultural do país e a burocracia. Ele diz que no Brasil é impossível para um cineasta ganhar dinheiro, só conseguiu comprar sua casa em São Paulo quando filmou fora do país. E reclama da nossa cultura de mercado, muito diferente da argentina que, com cinco ou seis filmes e baixo orçamento, já conquistou o gosto internacional em co-produções com Espanha ou França.

Falado em inglês, fora as peças que dirigiu este é seu 10º.filme, cheio de citações ao cinema e à vida pessoal. Por exemplo, o ator Reynaldo Gianechini, igualmente sobrevivente de um câncer, interpreta o médico oncologista Dráusio Varela, autor do livro Carandiru que inspirou o filme e, também, seu médico.

Babenco, Willem Dafoe, Bárbara Paz, Maria Fernanda Cândida, Reynaldo Gianechini, Selton Melo entre outros estarão presentes nas pré-estréias em São Paulo ( dia 3/2, Shopping Iguatemi), Rio de Janeiro (dia 4/2, Cine Odeon) , Porto Alegre (dia 29/2, GNC Iguatemi) e Salvador (dia 1/3). Vão conceder entrevistas e uma coletiva de imprensa, o que fornecerá material para atrair o público sempre temeroso de lidar com um tema como este, ainda por cima real. Segundo Babenco, “é uma história que aconteceu comigo e a conto da melhor maneira que eu sei”. Mas quando Meu Amigo Hindu terminar vai ficar a sensação de que lutar pela vida, em qualquer situação, vale a pena.

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Norma Couri e jornalista