O documentário brasileiro Cinema Novo, de Eryk Rocha, conseguiu o que muitos consideravam impossível: ganhar o premio L’Oeil D’Or (ou Olho de Ouro) em uma premiação paralela à Palma de Ouro, no Festival de Cinema de Cannes e que escolhe o melhor filme documental inscrito na mostra, que é uma das cinco mais importantes da Europa.
Cinema Novo disputou o prêmio com outros 16 concorrentes de diversos países e desbancou produções que trazem como narrativas a Arte (como E a Mulher criou Hollywood, das irmãs Kuperberg e finalistas do Olho de Ouro no ano passado), o imaginário popular (O Assobio da Família, de Michele Russo e que mergulha na história da icônica família Coppola) e as lutas políticas e sociais, como Exílio, de Rithy Panh, sobre o drama da imigração, e Elementos Errados, de Jonathan Littel e que retrata a vida de adolescentes-soldados sobreviventes à guerrilha em Uganda. Ainda compunham o páreo nomes de peso como Laura Poitras (Citizen Four) e Sébastien Lifshitz (Os Invisíveis).
E isso não é pouca coisa.
O prêmio foi concedido pelo júri presidido por um grande cineasta, o italiano Gianfranco Rosi, vencedor do Urso de Ouro da Berlinale deste ano com Fogo no Mar, e do Leão de Ouro, em Veneza, há três anos, com Sacro GRA. O brasileiro Amir Labaki, responsável pelo festival de documentários É Tudo Verdade, também participou do júri.
A pauta do jornalismo internacional
Que o cinema – seja de ficção ou documental – é intensamente pautado pelo Jornalismo Internacional não é nenhuma novidade. Prova disso é Spotlight, ganhador do Oscar deste ano e que retrata o trabalho jornalístico por detrás da denúncia de um dos maiores escândalos da Igreja Católica já conhecidos. A grande questão que merece nossa atenção é a ascensão constante de um gênero antes considerado alternativo e com pouca disseminação entre o público geral: o documentário. Vivemos uma crise que vai além da política, econômica e social. Estamos, paralelamente, em uma crise criativa e narrativa, onde o público já não mais se convence com histórias de contos de fadas ou fantasiosas. A realidade está batendo à porta dia após dia e é, justamente, por histórias relevantes que as pessoas anseiam.
Exemplos dessa sede pelo mundo real podem ser atestados nas mudanças observadas na configuração dos maiores festivais e prêmios cinematográficos ao redor do globo. O documentário Fogo no Mar levou o prêmio máximo na Berlinale 2016, fato que não acontecia há mais de sessenta anos, comprovando a força e o regresso do gênero documental nos tempos atuais. Já o Olho de Ouro, faturado por Cinema Novo, teve sua primeira edição no ano passado, o que revela a importância da existência de não apenas mostras, mas também premiações de filmes documentários, anunciando a adaptação às demandas da atualidade de um dos mais tradicionais festivais de cinema.
A busca por histórias relevantes, interessantes e capazes de envolver e emocionar não mais se limitam aos enredos documentais, criando um espaço-comum entre realidade e ficção. São produções que estão no meio do caminho entre dois gêneros, como afirma a atriz alemã Rosalie Thomas: “[a diretora] Doris Dörrie deixa-nos completamente livres no que toca à interpretação. Imagino que alguns dos meus colegas não gostem desse método. Eu gosto muito. Concordamos sobre os aspetos essenciais da personagem e ela deixou-me muito espaço para que eu pudesse literalmente dançar. Há muitos elementos de documentário neste filme e era preciso improvisar”. Rosalie é a protagonista do drama Fukushima, mon Amur, dirigido por Doris Dörrie e destaque na Berlinale 2016.
Trazendo ao público, simultaneamente, a angústia de uma jovem mulher que decide fugir de seus fantasmas e o desespero de sobreviventes dos terremotos de 2011 no Japão, em Fukushima Dörrie captura perfeitamente o espírito dos profissionais que apostam no Jornalismo Internacional e na História como fontes criativas para o enredo cinematográfico.
Uma vez descoberta a fórmula mágica para uma produção certeira, os documentários conquistaram uma posição de prestígio nos maiores eventos de Cinema, exercendo a árdua tarefa não somente de atualizar sobre o que acontece mundo afora, mas também de recuperar fatos passados. É o caso, precisamente, de Cinema Novo. Com uma narrativa poética, Eryk Rocha analisa o movimento cinematográfico que leva o mesmo nome de sua obra e que revolucionou a maneira de se fazer Cinema na América Latina.
Tendo como pano de fundo as instabilidades e angústias da década de 1960, o Cinema Novo surgiu com um grupo de jovens artistas frustrados com a indústria cinematográfica da época e que defendiam um cinema mais real, com mais conteúdo e menos custos. Os adeptos do movimento, como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Carlos Diegues, viam o cinema como ferramenta de transformação política, social e perceptiva. Em outras palavras, acreditavam ser fundamental a utilização dos recursos cinematográficos para denunciar os dramas da vida cotidiana.
Com influências do Neorrealismo italiano, da Nouvelle Vague francesa e impulsionado pela máxima “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, de Glauber Rocha, o Cinema Novo marcou a história cinematográfica brasileira, sendo o centro de uma das fases mais polêmicas do nosso cinema. Por meio de recortes, excertos, depoimentos e documentos de arquivo, Eryk (re)constrói um retrato intimista dos anos dourados de uma das mais importantes e emblemáticas correntes estéticas, temáticas e produtoras do cinema latino-americano.
Após receber o Olho de Ouro, Eryk declarou em entrevista ao jornal Valor Econômico que “a obra nasceu do meu desejo de investigar a história cinematográfica, cultural e política do meu país, em cruzamento com minhas raízes afetivas. Entender melhor e tentar iluminar a época em que vivo”. Com uma trajetória promissora (Rocha coleciona na bagagem títulos como A Rocha, Jards e o premiado e renomado Transeunte) e após nove meses de intenso trabalho de montagem, Rocha teve seu esforço recompensado, recebendo o Olho de Ouro 2016 e, ainda mais importante, reinserindo os fundamentos, métodos e diálogos do Cinema Novo na discussão cinematográfica do presente.
“É tudo verdade”
Para finalizar, não posso deixar de citar a 21ª edição do maior festival de documentários da América Latina, o É Tudo Verdade, que trouxe mais de oitenta produções variadas em temas, estéticas e narrativas. Entre a diversa seleção de filmes exibidos, temos o impressionante trabalho de Vitaly Mansky, Sob o Sol, que apresenta a inédita realidade dentro das fronteiras da Coréia do Norte; Chicago Boys, dirigido por Carola Fuentes e Rafael Valdeavellano, que expõe, pesquisa e analisa como um grupo de jovens economistas chilenos conseguiu implantar e sustentar a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990); e, até mesmo, Nuts, história – em animação – de um médico farsante que enganou milhares de pessoas, inclusive o Governo, e dirigido por Penny Lane.
Os grandes vencedores compartilham uma certa similaridade em suas temáticas: as questões familiares deixadas em aberto. Um caso de Família, de Tom Fassaert, cava fundo na história pessoal do diretor em busca de respostas, e O Futebol, de Sergio Oksman, revela o reencontro de pai e filho após 20 anos e suas conversas, descobertas e feridas.
O gênero documental se reinventou e hoje é capaz de construir narrativas e sequências tão envolventes e instigantes quanto qualquer aclamado filme de Hollywood. A seu favor, parece que o imediatismo do Jornalismo e o encantamento da História contribuem para a boa aceitação e avaliação do público, sempre em busca de novidades. Talvez, o gênero tenha chegado em sua época áurea. Trazendo inovações mas sem nunca perder sua essência, o documentário mostrou que, desta vez, veio para ficar. A maior evidência está em Cannes, onde os caminhos da Berlinale 2016, do Festival É Tudo Verdade, da História e do Jornalismo Internacional, finalmente, se encontraram.
***
Antonio Brasil é professor de jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina