Mais uma vez, o noticiário internacional celebrou o Festival de Cinema de Cannes que terminou no último domingo, dia 22 de maio. O aclamado filme brasileiro Aquarius acabou não levando o prêmio. A noite de sua estreia, no entanto, ficou marcada pela imprensa com a série de protestos do diretor Kleber Mendonça Filho e do elenco contra o impeachment de Dilma Rousseff e a atual instabilidade política no país. O grande vencedor da 69ª edição do festival foi o diretor britânico Ken Loach e seu drama I, Daniel Blake, que retrata a história de um operário doente e sua luta contra a burocracia para receber seu seguro-desemprego. Os problemas mundiais que são pautados nos jornais ainda são a grande inspiração para os maiores contadores de histórias no cinema.
A consagração de um filme fortemente político e até mesmo “jornalístico” como o grande vencedor – juntamente com o caloroso discurso do seu realizador – mostram, talvez, uma rendição de Cannes diante de um de seus grandes rivais: o Festival de Cinema de Berlim, ou Berlinale. A concorrência entre os dois festivais é assumida e reconhecida internacionalmente. Assim como é, também, reconhecida a veia política e social que pulsa a Berlinale desde os seus primórdios.
O Festival de Berlim 2016 encerrou no último dia 21 de fevereiro. Como era previsto, a 66ª edição contou com obras engajadas e de cunho político-social, abertura para novas maneiras de se fazer cinema e, claro, maior visibilidade aos filmes documentários jornalísticos. Aliás, pela primeira vez em mais de sessenta anos, um documentário com temática inspirada nos noticiários ganhou o Urso de Ouro. Fogo no Mar, do italiano Gianfranco Rosi sagrou-se grande vencedor, retratando a dura peregrinação dos refugiados em busca de um novo lar. O filme acabou de ser lançado nos cinemas das principais capitais brasileiras e deve ser programa obrigatório para todos que se interessam pelo melhor do cinema e do Jornalismo Internacional.
É bom relembrar que este ano, o engajamento da Berlinale não ficou limitado à mera apresentação e premiação de filmes. Os organizadores enfatizaram a ‘cultura das boas-vindas’, adotando uma série de atividades para que o festival se tornasse acessível a todos os moradores de Berlim – entre eles, as 79.034 pessoas que pediram refúgio na capital alemã em 2015. Em prol dos refugiados, foram anunciadas medidas como redução dos preços dos ingressos, cotas de passes livres e pedidos de doações em grande escala entre o público – coisa inédita na história do festival. Como escreveu o repórter Joachim Kürten para o jornal Deutsche Welle, “será constantemente lembrado que, também neste ano, a Berlinale é o mais politizado de todos os grandes festivais de cinema do mundo”.
Coberturas jornalísticas
Após algum tempo útil e necessário, creio que agora já é possível fazer uma análise e avaliação mais distanciada e aprofundada dos resultados da edição deste ano do festival. A nossa ênfase procura focar a importância da cobertura jornalística internacional para pautar alguns dos principais temas dos filmes selecionados e exibidos, em uma série de artigos de crítica de cinema e jornalismo para o nosso observatório.
Em 2016, as notícias sobre o fluxo de imigrantes para a Europa, as guerras no Oriente Médio, as ameaças ambientais e os problemas gerados pelas novas tecnologias pautaram os filmes selecionados. Ou seja, temas marcantes do Jornalismo Internacional e da História recente deram o tom do festival.
Foram mais de 400 filmes de diversos países assistidos por 337 mil pessoas durante 11 dias.
A cobertura jornalística deste evento também é algo extraordinário e merece atenção especial. Ainda mais em tempos de crise econômica em vários países. Mais de 3000 jornalistas de diversas nacionalidades, de milhares de veículos tradicionais e alternativos e, principalmente, de idades diversificadas foram credenciados para cobrir o festival em 2016.
Inclusive, este observador. Assisti a cerca de 30 filmes com temas diversos, mas o meu principal interesse foram os documentários e filmes alternativos.
Pelo segundo ano consecutivo, tenho o privilégio de cobrir jornalisticamente a Berlinale. Não faço uma cobertura diária dos principais filmes e das coletivas com as estrelas do cinema e grandes realizadores que participam do festival – essa cobertura é, essencialmente, voltada para a atualidade.
Minha visão da Berlinale está voltada para a análise, reflexão e avaliação dos rumos do evento como indicadores do cenário internacional para a cobertura jornalística no presente e no futuro.
O festival atesta pautas e indica novos temas para a cobertura internacional. Para mim, ele confirma as tendências do jornalismo internacional. Meu interesse também está voltado para as tendências na formação dos jornalistas e pesquisadores de jornalismo cultural sob a égide do cinema.
Afinal, Cinema e Jornalismo sempre tiveram uma relação muito próxima e visceral. Alguns dos maiores clássicos do Cinema, como Cidadão Kane, de Orson Welles, no passado, e Spotlight, vencedor do Oscar em 2016, confirmam esta relação de amor, ódio e interesse mútuo ente o Cinema e o Jornalismo.
Berlinale 2016
Nesta edição do festival de Berlim, ficou sedimentada a ressurreição ou reafirmação dos documentários no cenário cinematográfico e jornalístico mundial.
Para compreender essa sede da Berlinale por temas atuais e relevantes, é preciso entender um pouco da sua história. No final do ano de 1950, meio a uma Alemanha dividida e ainda se recuperando em tempos de pós-guerra, o oficial estadunidense Oscar Martay, responsável pelo Departamento de Cinema dos EUA na Alemanha, reuniu um comitê para criar um festival de cinema internacional em Berlim. No ano seguinte, aconteceria a primeira edição do festival, com abertura de Alfred Hitchcock e seu clássico Rebecca.
À época, Berlim ainda sofria com as heranças deixadas pela Segunda Guerra, estando muito longe de suas vibrantes cultura, atmosfera e inovações que marcaram a década de 1920. Com o lema “Vitrine de um mundo livre”, a Berlinale havia chegado para anunciar tempos de prosperidade e unificação. Em 1962, porém, acontecia a primeira edição em uma cidade fracionada e, mais uma vez, Cinema e História se fundem e confundem: na seleção de filmes não constava nenhuma produção do Leste Europeu.
A partir daí, a Berlinale começa a tomar forma e moldar seu caráter engajado e jornalístico, afinal, ela é produto de uma antiga encruzilhada da Guerra Fria. E, em alguns momentos com falta de “maiores e mais significantes problemas no mundo que nos rodeia”, a Berlinale parece sempre disposta a representar o maior número possível desses problemas. Muitos deles visivelmente selecionados do noticiário internacional.
Ou então trazer à tona o que se estabeleceu, em um pacto de silêncio, que deveria ser esquecido pela imprensa. Como é o caso da maior polêmica do festival até hoje, em 1970, quando o longa O.K., do alemão Michael Verhoeven, denunciou de maneira crítica a participação dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã, causando a ira dos convidados americanos. O júri foi dissolvido e o festival, interrompido.
Percebe-se, enfim, a inclinação da Berlinale desde suas origens por filmes com temas da atualidade, ou seja, pautados pela cobertura do noticiário internacional. Nas últimas edições, especialmente, têm-se visto, também, uma maior atenção aos documentários.
Além do já mencionado ganhador do Urso de Ouro de 2016, Fogo no Mar, a mesma edição trouxe, ainda, Zero Days, de Alex Gibney, que atenta para os riscos da espionagem online por parte de governos e suas potenciais consequências. Para fechar, o consagrado Michael Moore exibiu Where to invade next, um polêmico filme onde o diretor debocha da política norte-americana ao comparar os Estados Unidos com nove países europeus em categorias básicas, como emprego, alimentação e sistema penal.
Modelo consagrado
Já na edição anterior, em 2015, O documentário chileno O botão de pérola, de Patricio Guzmán, levou o Urso de Prata por melhor roteiro, em o que pode ser considerado como uma sequência de seu trabalho anterior, Nostalgia da Luz. Adotando uma narrativa poética e bem articulada, Guzmán tenta aproximar a geografia, o passado colonial e a ditadura de Pinochet no Chile através da observação das águas de seu país e de um botão de pérola, ponte que conecta as três pontas do triângulo. O filme foi bem recebido tanto pela crítica quanto pelo público, provando que, para o cinema, não existem narrativas impossíveis ou absurdas.
Com um enredo mais feroz, e nem por isso menos envolvente, Tell Spring not to come this year, de Saeed Taji Farouky e Michael McEvoy, ganhou o prêmio do público da Panorama. O longa relata a batalha de soldados afegãos contra o Taleban depois da retirada das tropas americanas. E, ainda, representando o Brasil, Walter Salles atraiu elogios com seu documentário intimista Jia Zhang-ke, um homem de Fenyang, sobre a vida do cineasta chinês.
O grande vencedor da Berlinale 2015 foi Taxi, do iraniano Jafar Panahi. Apesar de não ser classificado dentro do gênero documental, a produção é uma ficção que simula um documentário. Por meio de gravações clandestinas, o diretor constrói o retrato da sociedade iraniana através de conversas com passageiros enquanto dirige seu táxi, abordando questões sobre política, costumes e liberdade de expressão.
Aos detratores da Berlinale, de suas raízes, tendências e rumos, o diretor Dieter Kosslick, que dirige o festival desde 2001 e teve seu contrato renovado até 2016, tem uma resposta pronta: Olhe para os números. Afinal, a capital alemã é um centro cultural cosmopolita e emocionante que nunca deixou de atrair artistas de todo o mundo. Uma cena cultural diversa, um público crítico e um grande número de cinéfilos caracterizam a cidade. No meio de tudo isso, a Berlinale: um grande evento cultural e uma das datas mais importantes para a indústria cinematográfica internacional. Mais de 337.000 bilhetes vendidos, mais de 20.000 visitantes profissionais de 128 países, incluindo mais de 3.700 jornalistas: arte, glamour, negócios e política estão, inseparavelmente, ligados na Berlinale.
Esses números comprovam o interesse do mundo e principalmente, do noticiário internacional pelo Festival de Cinema de Berlim. Para os jovens jornalistas e cineastas brasileiros, é bom relembrar e enfatizar que os preparativos para a próxima edição do festival já estão em andamento. Quem sabe um documentário jornalístico brasileiro será o vencedor do Urso de Ouro da Berlinale 2017.