Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Esperando e orando pelo fim do mundo

Diretora Tonje Hessen Schei (foto: É tudo verdade)

Estamos acostumados a assimilar as religiões de uma maneira geral às mensagens de paz, amor, bondade, entendimento, confraternização e assim por diante. Mas numa parte do cristianismo evangélico ocorreu uma mudança teológica importante, embora pouco percebida e pouco comentada, decorrente ou causadora da aliança com movimentos políticos de extrema-direita norte-americanos.

Trata-se de uma releitura do Velho Testamento bíblico, no qual Deus, com o nome de Jeová, é guerreiro, exigente, vingador e cruel, fazendo alianças com homens imperfeitos, que se tornam heróis. Nada a ver com a figura do Cristo paz e amor. Entende-se: Israel vivia sendo atacado e precisava de líderes fortes para sobreviver.

Essa releitura da Bíblia, ao que parece, rejeita a submissão e bondade, procurando transformar os cristãos em lutadores e guerreiros contra os responsáveis pelos desvios do fundamentalismo. Só sob esse prisma se pode entender o forte apoio dos evangélicos e pentecostais a figuras grotescas como Donald Trump e Jair Bolsonaro, que teriam o apoio de Deus no combate ao comunismo, ao homossexualismo, ao desvirtuamento da família bíblica, à equiparação da mulher ao homem, ao transexualismo. Homens que veneram o velho Israel bíblico, aonde deverá retornar Cristo após a última guerra mundial e a próxima hecatombe nuclear!

Delírio à enésima potência, mas seguido por milhões de pessoas. Suspendo aqui esta introdução, para contar como decidi escrever esse comentário, baseado num documentário norueguês. Preocupante!

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A Variety, uma revista e website norte-americano de artes, cinema e variedades, me envia diariamente dezenas de e-mails, que nem sempre tenho tempo de ler. Vou descartando pelo título.

Foi justamente o título que me fez abrir a mensagem: “Rezando pelo Armagedom”. Tratava-se de uma informação sobre o documentário norueguês, com esse título, feito por uma já conhecida realizadora, Tonje Hessen Schei.

A notícia contava a venda dos direitos de distribuição do filme para uma empresa dinamarquesa e trazia um resumo do cenário. Me interessei e descobri já ter havido uma estreia internacional do filme “Rezando pelo Armagedom”, no festival CPH:DOX de Copenhague, e já ter sido exibido no 28º Festival de Documentários, É Tudo Verdade, em abril, na Cinemateca do Rio de Janeiro.

O documentário mostra uma realidade norte-americana, na qual grupos evangélicos fundamentalistas de extrema-direita formam lobbys, junto a políticos e personalidades importantes, com o objetivo de provocar a realização das profecias feitas no Apocalipse, último livro da Bíblia, no qual se fala em linguagem cifrada da Batalha de Armagedom, a última das batalhas provocadora do fim do nosso mundo, com a volta de Jesus Cristo.

É de se imaginar que esses devotos ou fanáticos se excitam, quando veem os noticiários sobre a guerra da invasão da Ucrânia pela Rússia, que destacam o risco do uso de armas nucleares capazes de destruir a vida na Terra. Ou seja, em lugar desses fundamentalistas evangélicos pregarem e se esforçarem pela paz mundial, agem, rezam ou oram, utilizam suas influências para agravar a tensão mundial na expectativa de provocarem a batalha final do Armagedom com a destruição do planeta.

Uma realidade absurda essa de desejarem uma espécie de suicídio coletivo, numa oposição aos esforços de pacifistas e da ONU, crendo cegamente nas visões do apóstolo João na Ilha de Patmos, já velhas de dois mil anos, cujas alegorias permanecem indecifráveis. Nem mesmo a chave do número do anti-Cristo, 666, quer dizer alguma coisa.

Tudo poderia ser descartado como delírio, mas se torna perigoso quando pastores, pretensos interpretadores do delírio profético, querem influir nas autoridades, militares e nos milhões de seguidores para provocar a guerra mundial apocalíptica!

O documentário mostra pessoas que acreditavam e acreditam ser o ex-presidente Trump um homem enviado por Deus, tanto quanto os evangélicos brasileiros estavam e estão convencidos de ser Bolsonaro um ungido e representante de Deus no Brasil.

Durante os quatro anos bolsonaristas denunciamos essa falsa e fantasiosa ficção pregada pela maioria dos pastores evangélicos, que levou muitos deles a justificar e a continuarem a justificar a pregação golpista de Bolsonaro e o ataque aos prédios dos Três Poderes no 8 de janeiro.

Nas redes sociais bolsonaristas havia muitos profetas, mascarando a tentativa de golpe como intervenção divina contra o comunismo e alguns mesmo misturando fim do mundo e volta de Cristo com a vitória do clã Bolsonaro.

O documentário “Rezando pelo Armagedom” mostra a força retrógrada e perigosa dos fanáticos evangélicos fundamentalistas norte-americanos, defendendo ideias medievais.

Um destaque é para o evangelho pregado por motociatas e motoqueiros, lembrando como Bolsonaro também gostava do ronco das motos. Trata-se da Missão M25, qualificada por críticos como uma gangue de motoqueiros evangélicos, que atravessa o país em carros compactos e grandes motocicletas barulhentas, fazendo proselitismo.

O evangelho para eles deixa de ser uma mensagem de paz e amor para se converter num thriller. O evangelho do Apocalipse é a linguagem guerreira do acerto de contas, da revanche, da punição violenta aos inimigos de Cristo. E eles estão nessa luta!

Uma frase de uma líder é marcante: “Existem apenas duas nações construídas para honrar a Deus: Israel e os EUA”.

Outro destaque: Ralph Drollinger, que dirigia o Grupo de Estudo Bíblico semanal da Casa Branca durante o governo Trump, alegando, no documentário, que os tempos estão “vivos com poderes demoníacos uma vez ocultos”. E o que são esses demônios, exatamente? “O movimento homossexual, o transgênero em nossas forças armadas, e a questão do aborto”.

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro sujo da corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A rebelião romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.