Para o realizador paraguaio Marcelo Martinessi, cujo filme As Herdeiras, levou o cinema paraguaio pela primeira vez ao Festival Internacional de Cinema de Berlim, o traço principal de seu país é a imobilidade das classes sociais e seu objetivo era o de mostrar essa situação de bloqueamento social. “Vivemos num país que é uma grande prisão, diz Martinesse mas é quase um clamor. Pensávamos que nossa geração iria mudar essa situação, mas o golpe parlamentar nos frustrou a todos”.
Na ausência do Brasil, Chile e Argentina, na competição internacional, e o México com um filme sobre um roubo no Museu de Antropologia, o Paraguai é, desta vez, o porta-voz social da América Latina, já que seus problemas, embora mais agravados, são praticamente os mesmos dos países latino-americanos. Porém, ao mesmo tempo, o filme As Herdeiras é uma história de domínio e controle no relacionamento humano num casal, na qual acaba por ocorrer, provocado pela necessidade de sobreviver e não por iniciativa própria, os desejos de liberdade e independência, detonadores da ruptura.
Como o Festival de Berlim tem uma grande sensibilidade social, embora o filme paraguaio tenha sido o segundo filme exibido, não se sabendo o que trarão os outros filmes, fica o registro de algum provável prêmio.
O filme As Herdeiras mostra uma casa da burguesia paraguaia onde vivem duas senhoras, um casal homossexual, cujas famílias de origem européia tinham deixado uma boa herança (principalmente as de Chela), mas que foi acabando ao chegar o começo da velhice. Chiquita mais esperta abusa nas dívidas e acaba sendo presa, pois a lei paraguaia permite esse tipo de prisão por denúncia dos credores. Chela, que passava o dia pintando e nem saía de casa, precisa encontrar uma maneira para sobreviver e, além de ir vendendo os móveis e objetos da casa, acaba se tornando com seu velho carro de marca, na motorista para as senhoras de alta classe do lugar.
Pouco a pouco seu espírito tímido e retraído vai descobrindo o mundo de fora e a independência que sua companheira lhe tirava. E é esse gosto pela liberdade recém-descoberta que Chela quer preservar quando Chiquita sai da prisão e quer retomar as rédeas do casal. “Essa casa era uma prisão, mas de certa forma assim vivem todas as mulheres paraguaias, pois embora sendo consideradas como mulheres objeto dos grande senhores , são elas que constituem o tecido social do país. O filme pode ser uma caricatura do que se passa na sociedade”, diz o realizador.
“O Paraguai era uma país invisível no cinema como é também na América Latina”. Martinessi diz ter se inspirado na sua infância para compor as cenas do filme, onde dentro de casa a luz é filtrada pelas cortinas e as bandejas do café seguem todo um ritual, obedecido pelas empregadas. No filme, Chela tem uma empregada paraguaia mestiça, que toma café na mesa com ela, coisa impossível nas famílias burguesas, acentua um jornalista paraguaio.
Embora pareça normal o homossexualismo das duas senhoras Chela e Chiquita, Martenassi afirma que essa tolerância pode existir só na burguesia, porém não na sociedade em geral, bastante homofóbica. Resumo da produção: Chela e Chiquita formam um casal há muito tempo. Ao longo dos anos, eles se adaptaram a uma repartição fixa dos papéis.
A Chiquita extrovertida é responsável por gerenciar a vida de ambas. Chela, por sua vez, reluta em deixar a casa, preferindo passar o dia no cavalete. As dificuldades financeiras as obrigam a vender alguns de seus móveis herdados, cada um uma peça de mobília com amadas lembranças. Quando Chiquita é enviada para a prisão por dívidas, Chela fica de repente sozinha. Ela passa a utilizar seu velho carro Daimler para fornecer um serviço de táxi a senhoras mais velhas e ricas do bairro. Em seu novo papel de motorista, ela conhece uma das filhas dessas senhoras — a jovem e viva Angy. O encontro tira Chela, bastante passiva, de sua reserva e a leva a redescobrir seus próprios desejos.
Explorando o mundo exterior de forma tímida e prudente como sua heroína, o filme dirige seu olhar sobre uma camada social da população que é estranhamente cortada da realidade e vive sem pensar no futuro. No entanto, quando Chela visita sua companheira na prisão, surge uma imagem completamente das condições no Paraguai.
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Rui Martins é jornalista e está em Berlim, convidado pelo Festival Internacional de Cinema de Berlim.