“Filho de Saul”, filme húngaro dirigido por László Nemes, é um dos melhores longas-metragens atualmente em cartaz no circuito nacional. Com justiça, ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro na premiação do dia 28/2/2016. A categoria que premia filmes estrangeiros talvez seja a mais interessante do Oscar porque é a menos contaminada pela indústria hollywoodiana e seus conluios – o que não significa que não haja conluios entre as produções estrangeiras ou que nenhum filme produzido em Hollywood seja interessante; entre os premiados deste ano, vale citar “Spotlight”, tão repercutido neste Observatório da Imprensa, que por sinal levou o Oscar de melhor filme.
“Filho de Saul” se passa na II Guerra Mundial, em um campo de concentração. O primeiro plano do filme é uma espécie de síntese da opção narrativa assumida pelo diretor, o que faz do filme algo diferente de tudo o que já se abordou sobre esse tema tão desgastado.
Do quadro fora de foco (fundo), emerge aos poucos para o primeiro plano a personagem Saul (figura). Ao longo do filme, a câmera está sempre fechada nele ou registra as cenas que ele presencia. Nem se trata propriamente de assumir o ponto de vista dos judeus e muito menos o dos nazistas. Raras vezes um longa-metragem assume o ponto de vista subjetivo de uma personagem sem que o espectador deixe de se inteirar do entorno. Saul não conduz o filme. Ele é o filme.
Busca obstinada
Saul trabalha como sonderkommando, isto é, integra o grupo de judeus que, separados dos demais, levam os prisioneiros para as câmaras de gás, retiram seus corpos e limpam os locais de onde os cadáveres são levados. Carrascos de si mesmos.
Logo no início do filme, Saul percebe que um menino resistiu milagrosamente à intoxicação e ainda estava com vida. Rapidamente, a criança é levada para um médico. Que cumpre com o seu papel: com as próprias mãos, mata o menino por asfixia.
A partir daí, Saul (e o filme) vive a busca obstinada para que ele seja enterrado com um mínimo de dignidade e em consonância com as tradições judaicas. Saul assume-se pai do menino morto. Não há menção alguma de que a criança seja realmente seu filho. Mas ele trata de convencer os colegas que é o pai do garoto, consegue libertar o corpo da necropsia e traz um rabino para perto com o intuito de enterrá-lo. Como lhe dizem, Saul troca a vida pela morte.
Os prisioneiros vivos já estão mortos
E morto em vida, talvez Saul já se perceba morto desde o início. A proeza do diretor é filmar a morte, na qual incidem o foco imagético e narrativo. Os elementos fora de foco fazem parte da vida – e essa é a inversão mais cruel levada a cabo pelo Holocausto.
Ao adotar uma criança morta, Saul se presta a identificar-se à sua condição (de morta) e assim concretizar o seu projeto: assumir-se, também ele, morto.
Em sua última aparição, ele dirige um franco sorriso (enfim, morto?) a uma criança alemã (viva), em uma bonita relação de campo e contracampo que traz a inversão derradeira: no fim das contas, não é Saul que dita o destino do menino/filho morto, mas é o menino alemão que o encontra e dita o seu destino (desejo?).
O holocausto alcançou a tragicidade limite: os prisioneiros vivos já estão mortos e sua liberdade é, paradoxalmente, morrer. E essa vida/morte só se mostra ao espectador pelos olhos de Saul – o espectador ou o vê, ou vê o que Saul vê. De resto, é a barbárie desfocada do início e o código sonoro dos tiros do final.
Veja o trailler do filme:
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Renato Tardivo é escritor e psicanalista