Apesar dos avanços das séries televisivas e das ameaças das novas tecnologias somadas a críticas cada vez mais contundentes e constantes, o velho Cinema continua a direcionar nossas conversas, causar polêmicas e, principalmente, garantir grandes manchetes nos principais jornais do mundo.
Nos últimos dias tivemos mais uma edição da Berlinale, o maior e nem sempre melhor festival internacional de Cinema. Em seguida, assistimos a mais uma polêmica e nem sempre justa premiação dos Oscars pela TV.
São grandes eventos internacionais que atraem a atenção e o interesse de milhões de pessoas no mundo inteiro. Mas festivais de Cinema e cerimônias do Oscar também são grandes e eficientes plataformas para difusão de ideias, conscientização popular e mobilização política.
Cinema ainda faz a cabeça das pessoas.
Berlinale 2018
Apesar da produção cada vez maior de filmes voltados prioritariamente para o mercado cinematográfico ou televisivo ou para ambos, filmes que privilegiam grandes bilheterias e que por isso tendem a ser menosprezados pela crítica, o Cinema com C maiúsculo insiste em manter seu lugar como protagonista importante e não mero coadjuvante no cenário político internacional.
Cinema ainda provoca e faz pensar.
Em relação à Berlinale em 2018, foram 10 dias diante do mais representativo da produção cinematográfica mundial. Os números sempre impressionam. Mais de 400 filmes em 2000 exibições com a participação intensiva e apaixonada do público estimado em 500 mil pessoas e com a cobertura jornalística impressionante de mais de 3 mil jornalistas credenciados vindos de mais de 100 países. A Berlinale é o lugar certo para chocar ou falar com o mundo.
Esta edição do festival não foi diferente. As posições feministas acompanharam o cenário internacional e fizeram presença logo na noite de estreia. Tapete vermelho deixa de ser caminho exclusivo para exibir o glamour de celebridades para se tornar plataforma política que exige mudanças urgentes para as mulheres e para o mundo. Igualdade e respeito passam a ser exigências urgentes para mulheres, refugiados, minorias e todos que se consideram injustiçados mesmo em países distantes e periféricos como o Brasil. Protestar é a cara da Berlinale.
O festival direcionou seus holofotes não só para manifestações políticas mas também para discussões importantes o futuro do cinema ou sobre o nosso futuro. Com filmes de ficção ou documentários, como estamos retratando nossos sonhos ou a realidade no Cinema? Dentro desse cenário, qual é o papel do Jornalismo para inspirar roteiristas na produção de filmes importantes e relevantes?
Cinema tem tudo a ver com o Jornalismo.
Alguns do melhores filmes da Berlinale se utilizaram das manchetes do jornais para produzirem verdadeiras obras-primas da cinematografia mundial.
Destaco um filme que foi pouco divulgado no Brasil e sequer tenho certeza se será exibido no circuito nacional. Trata-se de Utoya 22.Juli uma produção norueguesa polêmica, com cinematografia complexa e temática certamente chocante do diretor Erik Poppe. Mesmo para um jornalista veterano, apaixonado pelo Cinema e que acredita já viu “quase” tudo, o filme é simplesmente emocionante e extraordinário.
Cinema de imersão com suspensão de realidade.
Para quem acompanha o noticiário internacional, o título “Utoya 22.juli” remete ao local e a data de um das maiores tragédias da Europa. Em 2011, Anders Breivik, um terrorista norueguês, ativista político de extrema direita, após explodir um carro bomba no centro de Oslo que matou 8 pessoas, armado de fuzil automático e com muita munição, resolveu “caçar” centenas de jovens que estavam participando de um grande acampamento promovido pelo Partido Trabalhista norueguês na ilha de Utoya. Mais 62 pessoas foram mortas. Lembram?
Produzido com a difícil, complexa e inovadora técnica do “plano sequência” em longas metragens, o filme retrata pela ficção o horror das vítimas durante exatamente os mesmos 72 minutos do massacre. Sou suspeito para analisar a cinematografia extraordinária do câmera e diretor de fotografia, Martin Otterbeck, mas é um dos melhores filmes que já assisti na Berlinale.
Não tem como não se sentir totalmente “imerso” no pavor dos jovens noruegueses que estavam sendo caçados e que não tinham a menor ideia do que e como algo tão violento, tão sem sentido estava acontecendo. Talvez se fossem americanos ou brasileiros, acostumados a tantos massacres e violência urbana, os jovens noruegueses não ficassem tão surpresos e chocados.
Mas em um país como a Noruega, atentado terrorista era simplesmente incompreensível e inusitado.
Em Utoya 22. juli 22, o Cinema e o Jornalismo fazem parceria e se encarregam de mostrar o quão errados e despreparados estavam os noruegueses para um mundo cada vez mais comum, próximo e muito violento. Ninguém está livre das ameaças do terrorismo político ou religioso, nem mesmo na Noruega.
Cabe ao bom Cinema, ao Jornalismo competente e à Política responsável relembrar o passado recente e alertar o mundo sobre os perigos que nos cercam.
As ameaças de novos conflitos mundiais assim como a agenda urgente do feminismo exigente e militante ou as tragédias dos refugiados ou desastres ambientai continuam tendo destaque na cobertura jornalística da Berlinale 2018.
Cinema na TV
E a noite do Oscar não foi diferente.
A cerimônia deste ano falou ainda mais alto e forte sobre os direitos e ameaças contra as mulheres. Mais do que comemorar a indústria bilionária ou torcer pelos melhores filmes, atores e atrizes e ouvir os agradecimentos, manifestos e protestos dos vencedores, a própria Academia Cinematográfica Americana se utilizou da cerimônia de entrega dos Oscars para cobrar mudanças, criticar os erros e principalmente valorizar de forma inusitada a grande estrela da noite: o público que ainda vai cinema e que pode mudar o mundo.
Pode não vir a ser o mundo que sonhamos, mas mesmo pequenas mudanças podem atenuar ou diminuir tanta violência, injustiças principalmente contra as mulheres. Cinema, Jornalismo e Política continuam juntos, vivos e relevantes.
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Antonio Brasil é jornalista e professor de jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina.
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