Os leitores que desconfiavam dos vídeos e notícias do WhatsApp agora podem ter certeza, receberam fake news aos borbotões. Mas os que não optaram pelas redes sociais também não escaparam do diagnóstico enviado pela Veja neste fim de semana: uma eleição pode causar depressão, stress, ansiedade. O diretor do Conselho Federal de Psicologia, Pedro Paulo Gastalho de Bicalho, declarou no Estadão desta segunda-feira que, em 20 anos de profissão, nunca viu tanta instabilidade psíquica no país em consequência de um processo eleitoral. Insônia, pesadelos, angústia, medo do dia seguinte, tudo aumentado pelas guerras de extermínio.
Raquel Dodge, a Procuradora Geral da República imortalizada no vídeo em que dançou e cantou com sua antecessora Cármem Lúcia e Alcione, está com medo da virulência de bolsonaristas exaltados prometendo até fechar o STF com um soldado e um cabo. Regina Duarte, que em priscas eras declarou medo ao PT, agora de medo apóia João Dória para o governo de São Paulo.
Generais que deixam o quartel e ascendem na linha de frente do cenário pátrio dão entrevistas imponentes e ocupam boa parte das notícias. Na reta final, os dois candidatos à presidência causam stress nos eleitores, Bolsonaro defendendo ação de grupos de extermínio, Haddad se esforçando para provar que é só Haddad. Tudo pode piorar com as propostas para as aposentadorias que os brasileiros esperavam receber no fim da linha e agora corre o risco de virar fumaça. E tudo pode virar de cabeça para baixo na incerteza do que vai acontecer com Educação – militarismo?-, Saúde, e a famigerada Cultura. O emprego vai voltar às nossas mãos? E a economia, estúpido? Vivemos horrorizados com o passado e assustados com o futuro, a hipótese de um Cavalão ou uma incógnita. Ler, ver, ouvir notícias traz um mar de mentiras, indignações, heranças malditas, populismos, comparações a quadros hediondos da Hungria, Turquia, Filipinas. E ao processar tudo isso na mente a danada da memória não nos deixa esquecer os 21 anos de horror agora apagados pelo ministro Dias Tóffoli que em vez de golpe preferiu “movimento, revolução de 64”. Quando o Brasil se mira no espelho se horroriza. Espelho, espelho meu, haverá país mais feio do que eu?
É nesse ponto que o Brasil estagnou até domingo 28/10. Quando começar a nos alarmar? Só em janeiro? Aguentaremos?
Quem dá a dica para esse período entre eleições é Wim Wenders, que teve incluído na 42ª Mostra Internacional de São Paulo o belíssimo “Asas do Desejo” restaurado. O cineasta alemão inicia uma entrevista para o Estadão neste domingo com uma pergunta, “Mas, afinal, o que aconteceu no Brasil? Meu Deus!…as pessoas não têm memória da história…dá medo”.
Em “Asas do Desejo”, Wenders filmou há 30 anos Berlim pelo olhar dos anjos, que conseguem ouvir os pensamentos das pessoas e, ao perceber o desespero e a dor, tentam ajudar, salvar, o que contamina até um deles. O anjo Damiel, por amor, renunciou a imortalidade, decide virar humano.
Que antídoto maior para os males desse período pré-eleição do que “Asas do Desejo”? , ou alguns dos 315 filmes da Mostra, com vencedores nos principais festivais do mundo – Cannes, Berlim, Veneza? Como sabemos que poucos irão para o circuito comercial ocupado por blockbusters, e na incerteza do que vai acontecer com a Mostra no ano que vem, a receita é: aguardar o dia da eleição mergulhando em cinema.
Foi esse o tom de abertura da Mostra semana passada, torcendo pela liberdade de pensamento e de expressão, “cinema empurra à reflexão”, recomendou a diretora da Mostra, Renata de Almeida, “estamos sendo ameaçados”. E o diretor do SESC, Danilo Miranda, concluiu, a salvação será “Resistência!”. Reflexão e resistência para clarear até domingo 28/10 mentes conturbadas com notícias fake, uma tentativa para a nação recuperar o metrônomo e medir velocidade, precisão, ritmo e a verdade das notícias.
“A Valsa de Waldheim”, documentário de Ruth Beckermann, desmascara o passado nazista oculto e negado pelo ex-Secretário Geral da ONU, e ex- presidente da Áustria, Kurt Waldheim, durante todo o tempo em que esteve no poder.
“Guerra Fria”, de Zimna Wojna, vai de 1949 a 1959 desenrolando em p&b uma história de amor vivida na Polônia, Berlim, Iugoslávia e Paris entre duas pessoas de distintos objetivos políticos e de vida. Antagônicos como estão divididos os anti-bolsonaristas e os anti-petistas, Zema e Wiktor não se separam. Pawel Pawlikowski levou prêmio de melhor direção em Cannes.
A frase de Lincoln paira no ar, é possível enganar muitas pessoas ao mesmo tempo, mas não todas as pessoas o tempo todo. E serve para alternativas nem sempre honestas que as pessoas escolhem para sobreviver em tempos de crise, como a escritora sem editora, sem trabalho de “Poderia me Perdoar?”(Marielle Heller). É a história real da autora americana de biografias Lee Israel nas décadas de 1970 e 1980 que, no desespero da sobrevivência, parte para falsificações de cartas de escritores como Dorothy Parker, Nöel Coward, Lillian Hellman.
Quem disse que violência ou sexo precisam ser explícitos nas telas para ser real? Os filmes brasileiros precisam aprender com o memorável “Culpa”, dinamarquês, de Den Skyldige, que traz uma câmera praticamente estática em close diante do ator Gustav Müller, policial colocado por castigo no atendimento telefônico de socorro à vítimas locais. Sem sair do posto, sem mostrar nenhum dos horrores delatados pelas pessoas desesperadas do outro lado da linha, o filme que passa na cabeça da platéia é estarrecedor.
Da mesma forma “Em Chamas”, do coreano Chang-Dong Lee, ensina que o filme se passa mesmo na cabeça do espectador quando o entregador Jongsu descobre qual a real atividade do enigmático e bem sucedido na vida, Ben. No meio de tudo, crimes. O filme nasceu de um conto curto do japonês Haruki Murakami, e foi premio de crítica em Cannes.
Se estamos temendo arbitrariedades, o diretor Kirill Serebrennikov, está preso sem provas na Rússia mas a Mostra exibe seu filme “Verão” passado em Leningrado no início dos anos 1980. Frente à frente estão o rock e a Perestroilka, e o confronto entre a repressão, o desejo de ser nacionalista e alcançar o sucesso dos Sex Pistols, Talking Heads, Bob Dylan, Lou Reed. Os jovens querem mesmo mostrar ao mundo que há algo naquela União Soviética que vai além de Tchaikovsky, Tchekhov, Dostoiévski…
Mas se o desejo é desfazer uma rede de intrigas, percorrer as artimanhas e o cerimonial do poder, o filme é “A Favorita”, que abriu a Mostra, e escancara os bastidores da Corte inglesa no século XVIII. Estamos em casa, parece. E o filme é tão bom que levou vários prêmios como o de melhor atriz para a rainha Anne, Olivia Colman – conhecida atriz de comédias na Inglaterra -, atuando entre duas feras, Emma Stone, melhor atriz por “La La Land”, e Rachel Weisz, melhor coadjuvante em “O Jardineiro Fiel”.
Há alguns dias para a eleição e filmes não faltam. “Procurando por Ingmar Bergman”, documentário de Margarethe Von Trotta, dois filmes do argentino Fernando Solanas, homenageado na Mostra, o filme mudo de Georg Pabst “A Caixa de Pandora” que será exibido no Auditório do Ibirapuera dia 27, “A Casa que Jack Construíu” do polêmico dinamarquês Lars Von Trier, o último de Spike Lee, “Infiltrados no Clã”, e vários clássicos brasileiros , “Central do Brasil”, “Feliz Ano Velho”, ”O Bandido da Luz Vermelha”, “O Bravo Guerreiro”, ”Pixote”…
Por enquanto o recado dos finlandeses para este momento é “Rir ou Morrer”, realizado para comemorar os 100 anos da independência da Finlândia. Uma história real passada em 1918 entre prisioneiros que, para escapar da execução, devem encenar uma comédia e fazer rir o comandante da tropa alemã. Numa entrevista concedida ao final do filme, o produtor Klaus Heydemann deu a dica para enfrentar o momento político brasileiro, rir e tentar reverter o quadro é o melhor a fazer. “Nunca esperar a morte passivamente num galpão foi a lição dos prisioneiros deste filme. Rir, e partir para uma ação positiva!”. Até as eleições.
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Norma Couri é jornalista.