1982: O Brasil amargava 18 anos de uma ditadura que durou 21 anos, o Líbano vivia uma dramática experiência de guerra. Foi há 40 anos, mas quem viveu uma e outra violência ficou marcado, alguns com ódio, rancor e amargura, outros com a imensa vontade de chamar a atenção do mundo para os estragos da loucura onde pessoas matam, torturam, invadem e se desumanizam. No Brasil, vários artistas, escritores e cineastas expurgaram os horrores desse período dramático em livros, poemas, filmes para que nunca nos esqueçamos. Agora o libanês Oualid Mouaness faz o mesmo, lançando no Brasil o filme mais tocante, 1982, sobre os bombardeios sofridos naquele ano em que ele foi vítima como criança, sem entender a violência que os adultos tentavam ocultar.
Com inserção de técnicas de animação 1982 é um retrato sonoro e plástico do registro que uma criança, o menino Wissam, faz dos acontecimentos político-ideológicos insanos provocados por adultos. E o medo que ele decifra nos olhos da professora Yasmine, vivido pela cineasta premiada Nadine Labaki (Carnafaum, Para Onde Vamos Agora, Caramelo). Como disse o produtor brasileiro Jorge Takla, que viveu no Líbano até os 18 anos, os adultos mentem para proteger a criança que nunca chegará a saber o labirinto mortífero de um conflito.
Foi a primeira vez que o diretor vivenciou a guerra em Beirute. O conflito que inspirou o filme começou no dia 6 de junho de 1982. Com apoio das milicias libanesas, as Forças de Defesa de Israel invadiram o sul do Líbano para cessar os ataques da Organização para a Libertação dos Palestinos. E chegaram a Beirute. Centenas de milhares de pessoas morreram, a capital do país ficou arruinada. A OLP saiu do país em 1983, mas os horrores vividos pelo menino Oualid não se apagaram com a trégua.
Adultos conseguem escamotear, sublimar, amortecer de diversas maneiras uma violência. As crianças, não.
O filme toca fundo, a ponto de reavivar memórias como a do meu pai, que nasceu no Brasil, mas entre a infância e adolescência viveu a Primeira Guerra no Líbano, impedido de retornar. quando conseguiu entrou para a Faculdade de Direito no Brasil, turma de 1933, e seguiu a vida. Meu pai e nossa família estão entre os 10 milhões de descendentes de libaneses vivendo no Brasil, contra 6 milhões no Líbano. Ele nunca mencionou, mas como Oualid Mouaness e Jorge Takla também nunca se livrou do trauma. Já na casa dos 80 anos, tremeu e chorou de medo quando a guerra do Golfo estourou. Estávamos na Europa e ele insistiu para voltar ao Brasil, acuado. Imaginava que o conflito poderia chegar até ele e ficaria novamente impedido de retornar ao Brasil. Vivia cada guerra como um menino.
A guerra eclode em Beirute no momento em que o mundo infantil do protagonista de 1982 está descobrindo o amor, o lado ensolarado da vida. A magia e a fantasia correndo nas veias, ao mesmo tempo em que as bombas sangram o céu. É nesse delicado equilíbrio que 1982 se desenrola, no lado humano da vida. “Violência não é a resposta”, diz Mouaness. Fica clara a opção de uma criança, quando a escolha é entre dor e amor, agressão e paz. O filme traz esse lembrete aos adultos do mundo todo, importante neste momento político brasileiro.
Radicado em Los Angeles, Oualid Mouaness admite que se trata de um filme autobiográfico, aquele impacto que ele reteve na escola em 1982. Precisava reviver. “Mas não com raiva. É preciso mostrar que há esperança”. Bolsista do Sundance Lab, o cineasta teve apoio internacional para a produção do filme – Doha Film Institute, Sorfond, The Boghossian Foundatiion, Organization Internationale de Francofonie, The Lebanese Cinema Foundation, IFP, Sundance Institute. Levou oito anos para terminar 1982. E apesar de dividido em várias facções fraticidas, todas as alas que habitam o Líbano, e são ora adversárias, ora irmãs, ficaram comovidas com o relato.
O filme segue a trilha da poesia do cineasta iraniano Abbas Kiarostami (“Onde Fica a Casa do Meu Amigo?”), a opção pela simplicidade e humanidade, o enfoque nas pessoas normais, o toque no coração e mentes.
“Escolas são espaços sagrados”, ele diz, e é acompanhado pelo diretor e encenador Jorge Takla, ambos avessos a preconceitos, xenofobias, e embates religiosos, criados em um Líbano onde todas as etnias e tendências viviam em paz, árabes, judeus, muçulmanos. “Éramos todos libaneses”. Uma criança tem sempre de achar que o mundo é bom. “Crescemos numa guerra e talvez estejamos numa outra agora”. No Brasil, inclusive.
1982 é um filme imperdível para o nosso Brasil atual, tenso, de guerras surdas cotidianas, de violências germinadas em ovos de serpentes que julgávamos extirpadas depois de 1985, com o fim da ditadura militar. É um alerta importante de um cineasta que representou o Líbano no Oscar em 2020 justamente com 1982 e ganhou 19 prêmios pelo mundo, entre eles o Prix Cannes Écrans Juniors 2021 e o Netpac Award Toronto. A pandemia impediu sua distribuição, que estreia este mês nos Estados Unidos e vem a calhar no Brasil turbulento que vivemos.
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Norma Couri é jornalista e Diretora de Inclusão Social, Mulher e Diversidade na Associação Brasileira de Imprensa (ABI).