O primeiro filme da competição na Berlinale, Hedi, era tunisiano, dirigido por Mohamed Ben Attia, nascido em Tunis mas com estudos de cinema na França, onde vive. Para se entender a história do filme é preciso uma explicação : a Tunísia sempre foi uma exceção entre os países muçulmanos, desde sua independência da colonização francesa, por adotado uma linha liberal ou por seguir uma religião modernizada.
Entretanto, depois da Primavera Árabe, revolta popular que começou justamente em Tunis, os religiosos passaram a ter força política, confirmando aquela velha regra de que a revolução não é para quem a faz, e isso se agravou com alguns recentes atentados por extremistas inspirados pelo Estado Islâmico. A liberdade feminina de nem sempre usar o véu ou chador e de ir à praia de maiô tem diminuído.
Hedi, o filme tunisiano, conta os dias que antecedem o casamento de um “filho da mamãe”, com casamento arranjado e sem prévias sexuais antes das bodas (nada a se estranhar, pois no Brasil até ainda há pouco tempo, as moças de boa família casavam virgens). Embora consideradas inferiores aos homens, as mães tunisianas podem se tornar super-mães numa espécie de estranho matriarcado, no qual pela educação ela perpetua a supremacia masculina, mas conserva uma boa parte do poder familiar.
Hedi é um produto de mãe dominadora, inclusive pela falta de empenho no trabalho. Nos dias que antecedem seu casamento, em lugar de vender automóveis da Peugeot, seu emprego, vai à praia e lá encontra uma bela tunisiana livre do esquema familiar habitual.
Acaba tendo uma caso com ela e se apaixonando, pois ela significa algo novo, viver sem contrôle da mãe. Como gosta de desenhar, já se imagina vivendo disso na França, para onde Rim, a mulher diferente da futura esposa escolhida por sua mãe, pretende ir. O amor recém-descoberto, a possibilidade de ser livre e sair da proteção materna, dão coragem para Hedi se revoltar, anular o casamento e afrontar sua mãe.
Porém, no dia seguinte, quando Rim e ele devem tomar o avião, Hedi murcha e decide ficar, provavelmente não acreditando na sua própria força para enfrentar a vida na França.
Cartas de amor e guerra
Outro filme inscrito na mostra internacional e concorrendo ao Urso de Ouro é o português “Cartas da Guerra”, do diretor Ivo Ferreira., que foi bem acolhido pelos participantes no Festival Internacional de Cinema de Berlim. Conta a história verdadeira do médico Antonio Lobo Antunes mobilizado para a guerra colonial em Angola, onde sentindo-se só em meio aos horrores do conflito, escreve cartas para sua esposa.
No filme em preto e branco, rodado em Angola, revivendo o movimento das tropas, são lidos muitos trechos dessas cartas de amor, guardadas pela esposa, transformadas em livro e selecionadas para o filme pelas duas filhas do casal.
Além de descrever a vida dos soldados na guerra colonial, essas cartas foram os primeiros escritos daquele que se tornaria um dos grandes escritores portugueses, Antonio Lobo Antunes. Diante da miséria presenciada como médico dos soldados, Antunes contava ter se conscientizado da questão colonial e do absurdo da guerra.
Nessa época, 1971, o pai do realizador Ivo Ferreira vivia exilado em Paris, para onde fugiam muitos jovens, antes de serem enviados para a guerra colonial. Paradoxalmente, foi a guerra colonial que acabou provocando a queda da mais longa ditadura europeia, criada por Salazar.
O excelente filme Cartas da Guerra, de guerra e romantismo, está no concurso internacional do Festival de Cinema de Berlim e concorre aos ursos de ouro ou de prata, a serem comunicados no próximo sábado 20, pela atriz Meryl Streep, presidente do júri.
Emma Thompson e a realidade europeia
O filme “Sós em Berlim” é uma coprodução francesa-alemã-inglesa, dirigido pelo suíço filho de alemã, Vincent Perez, e a atriz principal é Emma Thompson, no papel de uma militante da resistência contra o nazismo durante a II guerra Mundial. Estes fatores foram suficientes para lotar a enorme sala, onde cabem mais de trezentos jornalistas e críticos de cinema.
Conhecida pelo seu passado de militante e mesmo sua preferência por filme engajados, a primeira pergunta a Emma Thompson não era de cinema mas da atualidade. Veio de uma jornalista colombiana :
“Gostaria de saber, tendo em vista seu passado de lutas e seu papel num filme de resistentes, qual sua opinião sobre o movimento Pegida, de extrema-direita contra refugiados, e sobre a posição do Reino Unido na questão dos refugiados”.
Apanhada de surpresa, Emma Thompson, ainda uma bela e marcante mulher, esquivou-se com classe, e passou a pergunta para o ator alemão Daniel Bruehl, seu colega de filme :
” Boa noite,disse Emma Thompson na resposta, esse é um bom começo numa entrevista sobre um filme que trata de outra coisa… enfim, há uma boa resposta que poderá ser dada por Daniel, que habita na Alemanha, com quem falei esta manhã justamente sobre isso. Eu vivo, na Europa, num lugar úmido e chuvoso, uma espécie de Europa mas não exatamente, por assim dizer, cheia de neblina e miséria, enfim, uma ilha que dá a impressão de querer voltar as costas para os que precisam de ajuda, algo muito em voga atualmente”.
Depois de outras perguntas, quase ao fim, desejei cobrar outra definição : ” Emma Thompson, conhecemos seu passado de lutas e tendo em vista que o filme é político e que a Europa está em crise, perguntamos e esperamos não descartar, se votará para a Inglaterra continuar ou sair da União Europeia ?”
Na resposta, a respeitada atriz, dessa vez não deixou dúvida : ” Eu me sinto pessoalmente bastante europeia, mesmo vivendo na Escócia. É evidente que eu irei votar para que continuemos na Europa, sem dúvida ! Seria uma loucura não votar assim. É uma ideia completamente maluca essa de sair da União Europeia. É preciso se derrubar obstáculos e romper as fronteiras, em lugar de criar novas fronteiras”.
Seguem outra principais respostas de Emma Thompson :
– ” Nasci em 1959, ou seja, catorze anos depois do fim da Segunda Guerra, vivi numa Inglaterra austera, me lembro do nossa primeira televisão que devíamos recarregar a manivela, quando eu tinha sete anos. Éramos sempre os bons e tínhamos combatido os nazistas, mais tarde descobri que muitos alemães também achavam que foram dominados pelos nazistas como aconteceu com outros os países europeus”.
– ” Para me preparar ao filme, tentei me colocar na mesma atmosfera daqueles que viviam em Berlim nessa época. A Rússia de Stalin não era muito diferente e o mesmo ocorreu com países dominados por regimes totalitários fascistas”.
– “O horror nesses países era levar as pessoas a se espionarem. Quem irá me denunciar, cada um devia se perguntar. Que dedo duro vai me levar à polícia e por qual motivo?”
O filme Sós em Berlim
O filme “Sós em Berlim” conta a história verídica de um casal de trabalhadores alemães que, após a morte do filho único na ocupação da França, decide resistir ao regime cruel e violento mas num papel de formiga, como escrever cartões postais denunciando Hitler e o nazismo e distribuí-los pelos prédios de apartamentos de Berlim.
Embora não soubessem, a quase totalidade dos cartões era levada imediatamente por delatores ao comissariado mais próximo, que procurava localizar de onde vinham os cartões. Só 18 cartões, de cerca de trezentos, não foram levados ao comissariado.
Por essa ação que de forma alguma ameaçava o regime nazista, o casal acabou sendo localizado e preso. Após processo, ambos foram condenados à morte.
Essa história foi localizada pelo escritor alemão Hans Fallada, nos arquivos dos processos movidos pelo regime nazista contra cidadãos alemães envolvidos em ações contra o governo.
O diretor Vincent Perez destacou o fato do casal ser formado por pessoas do povo com forte determinação, correndo sérios riscos numa época de delação institucionalizada.
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Rui Martins, do Festival de Cinema de Berlim.