Uma breve discussão sobre as origens da tela ativista do cinema e do documentário, que cada vez mais têm se apresentado como palco para a apresentação e a representação dos problemas de nossa sociedade.
Esqueça mocinhos ou bandidos e o era uma vez. Esqueça mesmo a ficção. Existe uma vertente da produção audiovisual cuja ocupação passa longe da invenção de histórias. E vários de seus representantes estão bem no meio de nós, na América Latina. No continente, que muito sofre e sofreu com o colonialismo, o cinema e o documentário têm se constituído como uma das principais formas de resistência a esse modelo político.
Haveria uma extensa lista de bons exemplos a ser citados. Alguns deles seriam o Cinema Novo, no Brasil, ou no cinema militante argentino. Há ainda os filmes do argentino radicado no Brasil Carlos Pronzato, dos chilenos Patrício Guzman e Miguel Littin ou de Jorge Sanjinés, na Bolívia. Sem contar a fase mexicana de Luis Buñuel, Tomás Gutiérrez Alea em Cuba, e Fernando Birri e a escola de Santa Fé.
Todos esses nomes mostram que não são casos isolados de um movimento dissoluto ou panfletário. Pelo contrário, são um grupo grande e consistente de cineastas permanentemente dispostos a reescrever o enredo da história de nossos povos. Nessa nova cena, o documentário vem para restaurar vínculos dissipados pela mediação da experiência de realidade a que somos submetidos pelas novas mídias – que submetem a fé perceptiva à fé técnica. Ele chega para liberar essas imagens que fazemos do mundo e devolver a participação mística por meio da realidade palpável e concreta da experiência coletiva.
A voz do povo – o documentarista social
Se estamos falando da reconfiguração do cinema e do documentário como forma de expressão social, é preciso observar melhor essa sociedade e suas formas de organização – que tem mudado muito e rapidamente nas últimas décadas. Hoje, a antiga militância organizada sob a forma de partidos e sindicatos transformou-se em movimento autônomo, horizontalizado e não hierarquizado. Ao mesmo tempo, a cultura do faça você mesmo toma novas formas, lançando para o fazer coletivo temas que antes seriam da ordem dos interesses individuais.
Na Grécia antiga, o termo cidadania consiste no direito de participar dos processos coletivos de decisão dos destinos da cidade. A cidadania não está ligada somente ao “direito de ter direitos” ou à questão básica do acesso a uma vida digna. O termo cidadão deriva-se da palavra latina civita que significa cidade e que tem como correlato o grego politikos – aquele que vive na cidade.
Vivemos em tempos mediados e midiatizados. Com as novas relações de trabalho, surge então, uma nova divisão. Qual o tempo necessário para a crítica e o esclarecimento? Qual o papel dos meios e das práticas comunicacionais?
Expediente Organizações Globo – Telesur
Qual a função da escola na formação deste cidadão audiovisual? Estamos reduzidos a uma mídia corporativa e reducionista onde tudo é espetáculo. É a barbárie pela barbárie ou o caos pelo espetáculo.
Na primavera de 1968, na França, Jean-Luc Godard acenou para um cinema de ruptura. O mundo estava em mudanças. Era um período de Guerra Fria onde as instituições de ensino estavam sofrendo uma forte pressão para mudanças em seus projetos. Em razão disso, os estudantes franceses se rebelaram e criaram um embate, propuseram uma ruptura ao sistema de ensino instalado por Charles De Gaulle, influenciado pela política norte-americana. No Brasil, influenciado por estas rupturas, surge o Cinema Novo, onde se destacavam, entre outros, Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, além do Cinema Marginal, representado por Carlos Reichenbach, Rogério Sganzerla e Paulo César Pereio.
Uma arma muito importante
Os ventos da contracultura provocaram a necessidade de exercer o exercício das rupturas. O processo de produção de vídeo sofreu uma forte influência destas ações, sobretudo, na cobertura de manifestações. Com o advento do vídeo digital e de novos processos de produção e pós-produção, surge o que denominamos de documentarista social.
A partir de agora – as jornadas de junho no Brasil –
Os limites do documentarista e ativista se misturam, perdendo-se os limites entre o ativista que está gravando e o ativista que está participando da manifestação. O documentarista social surge neste momento como sujeitos históricos a registrar o conceito de justiça social. Através do registro de imagens é possível proporcionar o debate, construir uma rede de relações contrárias às políticas públicas comandadas por uma minoria. Neste contexto, a formação se faz necessária para estimular a comunidade, promovendo a capacitação e o desenvolvimento de grupos excluídos do acesso da produção e acesso à informação contribuindo para a democratização do conhecimento.
A formação na produção de documentários tem grande possibilidade de expressar a vontade dos movimentos sociais de caráter popular.
O documentarista social tem um papel fundamental na ajuda a estes movimentos, produzindo documentários que eles necessitam em sua organização e/ou formação dos grupos a produzirem sua própria comunicação. Nos final do século XX temos uma explosão na produção de documentários com ênfase nos acontecimentos sociais em virtude das novas tecnologias informação e comunicação: câmeras digitais, smartphones, tablets e a Internet — neste caso, meio essencial na distribuição e organização das redes.
Em “Ideologia e cultura moderna”, John B. Thompson define que o que sabemos sobre aquilo que ocorre além do nosso meio social imediato é, em grande parte, derivado de nossa recepção das formas simbólicas mediadas pelos veículos de comunicação. Assim, se a mídia se constrói como espaço público e confere visibilidade aos acontecimentos sociais, aparecer nesse espaço significa, na atualidade, inserir-se no campo do que é visível e compartilhado socialmente. “Entrar” na tela, nesse contexto, é abrir uma janela para o mundo.
Em alguns momentos históricos, o documentário brasileiro, herdeiro político de uma longa tradição do populismo, trata de forma paternalista dos problemas sociais brasileiros. As massas são apresentadas como algo amorfo, sem vontade própria e sem capacidade de produzir um discurso crítico, isto é, quando também não são retratadas como algo exótico, neste caso, na ficção, temos uma forte influência da estética do filme publicitário.
Trailler oficial de Cidade de Deus
Estes mesmos excluídos, detectados por diversas vezes equivocadamente, e através das lentes do documentarista social podem ganhar novas formas de representação, começam a ser retratados com saberes, vontades e capacidade de formular hipóteses sobre sua própria situação.
O documentário agora não entendido apenas como um gênero do audiovisual. É uma arma muito importante para quebrar a representação que os grandes meios fazem de uma grande parcela da população.
Acabou a paz – Escolas ocupadas em SP – Trailer – https://youtu.be/cgrAbm1ONYc
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Richardson Pontone é documentarista, pesquisador em educação e tecnologia e prof