Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Bacurau e o Brasil estilhaçado

(Foto: Reprodução – Filme “Bacurau”)

Publicado originalmente no site objETHOS

Os créditos finais sobem e se instala um silêncio, seguido de aplausos entusiasmados e, em alguns casos, até de lágrimas incontidas. A reação se soma a outra característica atípica: a exibição recém-encerrada é de um filme nacional e a sala está lotada. Foi intensa e surpreendente a pré-estreia de Bacurau, dirigido e roteirizado por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, dia 24 de agosto em Florianópolis. A julgar pela sessão, a narrativa sobre o fictício vilarejo no sertão nordestino parece também ter sido aprovada pela plateia local. A rápida referência da obra à ideia de um “Sul do Brasil” – na cena em que atiradores brasileiros se revelam supostamente “diferenciados”, pois oriundos desta região – é só um dos indicadores de um Brasil estilhaçado, numa inevitável alusão à atual realidade do país. Mesmo não tendo sido indicada para representar o Brasil no Oscar 2020, essa distopia perturba e escancara uma arrebatadora alegoria ao nosso legado de violências (SCHWARTZ, 2019).

“Lavem o chão, mas as marcas de sangue nas paredes devem ficar”. A fala de uma das personagens, após uma carnificina local, soa como uma metáfora precisa da história brasileira: não adianta tentar mascarar a brutalidade da nossa sanguinária trajetória, apagando a sujeira ou substituindo-a pela ideia de país “pacífico” e “cordial”. Em Bacurau, lugar desaparecido do mapa e que batiza o filme, a resistência é condição obrigatória. A potência reside na força da coletividade contra diferentes ameaças, do histórico de escassez e ausências do Estado a invasores externos. Quando assassinatos, em princípio misteriosos, começam a acontecer e assustar os moradores, a força da população novamente é despertada na definição do destino da comunidade. A tradição e a unidade dos habitantes se contrapõem à indiferença do grupo americano associado a poderosos brasileiros que, com a ajuda de artifícios tecnológicos, encontra na ação de matar (e na possível impunidade arquitetada previamente) a sua diversão preferida.

Com excesso de tiros, cenas de matança e associado por muitos a um “faroeste brasileiro”, o filme pode causar estranhamento, mal-estar e objeção. Mas os maiores tensionamentos e desconfortos provocados por ele podem não estar na sequência de cenas de hostilidade, com decapitação e violência armada; encontram-se na exploração das contradições e paradoxos sobre o Brasil. Para além da explosão de violência ou possibilidade de pegar em armas para reagir – o que a história já demonstrou não ser uma escolha viável -, a capacidade está na possibilidade transformadora de busca por uma solução que passe pela unidade: a não aceitação e inconformismo com a situação que lhes é submetida. Afinal, Bacurau pode ter sido extinta das cartografias tradicionais, mas, por uma questão de existência e sobrevivência, propõe um autodesenho: cria o próprio mapa, e, nesse sentido, reinventa-se.

A disputa pelo espaço está presente também nos filmes anteriores de Mendonça. Aquarius (2016) denuncia a especulação imobiliária no litoral do Recife (PE) e Som ao Redor (2012), a milícia ocupando uma rua da mesma cidade. Nome de pássaro noturno comum no cerrado brasileiro e de linha de ônibus da madrugada em Recife, Bacurau alcança linguagem universal, apesar de assumir peculiaridades, sutilezas e símbolos tão específicos de um território. Se há significados implícitos, restritos a quem conhece bem a realidade brasileira, nada impede que a obra seja consagrada por onde tem passado. A recepção positiva de público e da crítica alcança também o exterior, onde conquistou prêmios importantes (prêmio do júri no Festival de Cannes, melhor filme no Festival de Cinema Latino de Lima e melhor filme estrangeiro do Festival de Munique).

Não há um protagonista apenas na narrativa. Vários personagens ganham destaque de modo a enaltecer a diversidade da comunidade de modo geral. Assim, acompanhamos o povoado se desvelar pelas ações de personagens como a única médica da localidade, Domingas (Sônia Braga); a enfermeira Teresa (Barbara Colen), que retorna da capital ao povoado para o enterro da avó; a matriarca Dona Carmelita (Lia de Itamaracá), mulher forte e guerreira que falece aos 94 anos, para citar apenas algumas… Comerciantes, putas, transgêneros… formam um universo heterogêneo, mas robusto, especialmente composto por pessoas não brancas, dispostas a resistir. Em sua rotina diária de trabalho, ao tentar mostrar à classe de estudantes o lugar onde eles estão situados, um professor (Wilson Rabelo) verifica que a cidade deixou de constar no mapa – este é o prelúdio de uma possibilidade real que se desenha no horizonte de Bacurau, caso o iminente ataque forasteiro se efetive.

Caetano, Glauber, Lampião
Gravado no povoado de Barra, na fronteira do Rio Grande do Norte com a Paraíba, Bacurau é um convite à reflexão do que ocorre com a nação. A brasilidade acompanha a obra desde a canção de abertura, Não identificado, de Caetano Veloso, na voz de Gal Costa. Inclui também referências ao cangaço de Lampião e ao Cinema Novo, de Glauber Rocha. O filme revela ainda que, de maneira implícita (ou, mesmo, subterrânea), o valor de se conhecer a própria história e o quanto uma saga anterior de luta armada (exposta, mas também preservada no museu, orgulho dos moradores) pode ser importante e acessível para a defesa das minorias sob ameaça. Dispor de conhecimentos ancorados em pressupostos históricos é fator que, antes de representar uma ode à violência pura e simples ou à vingança sangrenta, constitui a representação de um povo pacífico e receptivo, mas que, diante da ameaça, sabe se defender e fazer valer os seus valores.

Ademais, é possível estabelecer também relações entre o filme e questões de ordem mais estrutural, como nossa relação com a informação. Um sistema de comunicação em rede e por aplicativo, atualização das antigas trocas informativas humanas, torna-se importante recurso utilizado pelo povoado. No entanto, também se podem questionar as limitações geradas quando esse sistema é cortado. Além do intercâmbio de mensagens, revela-se bastante eficaz para garantir inclusive a proteção contra o assédio político do prefeito da cidade (que fornece de graça ao vilarejo um tranquilizante tarja preta, capaz de deixar qualquer um “leso” e trata os livros como lixo ao despejar vários deles da caçamba de um caminhão) e a própria segurança dos moradores de Bacurau. Em tempos em que os processos de desinformação se disseminam e são inclusive usados por políticos em eleições, a criação de mecanismos de controle não é apenas bem-vinda, mas desejável. Num ambiente em que todos se conhecem, a fraternidade compartilhada é o esteio em que se fortalece a necessidade de resistir e lutar.

Mais de um viés de leitura pode (e deve) ser acionado para que se busque compreender a envergadura dessa obra cinematográfica. Olhares críticos em torno da produção, como os de Eduardo Escorel e Jerônimo Teixeira, ou entusiastas, como o de Ivana Bentes, são algumas das possibilidades decorrentes de assistir o longa – também tomado como objeto de análise em colunas do The New York Times e The Guardian. Sob uma mirada inicial, pode-se visualizar que, em uma atitude meramente combativa e tão absolutamente violenta quanto a de seus algozes, a população de Bacurau apenas revida, “dá o troco” na mesma moeda, frente às ações que se quer desferir sobre ela. Nessa perspectiva, a atitude dos moradores representa “mais do mesmo” (e revigora os estereótipos copiosamente cimentados no imaginário brasileiro em torno do Nordeste – e, por que não, de todo o país), sendo equivalente à de seus antagonistas.

Outra possibilidade de leitura ocorre, no entanto, quando se parte de uma ótica que reconhece a importância da coesão da população em defesa de seu lugar; nessa leitura, a aposta na violência, se tomada como metáfora, reforça a busca pela preservação do vilarejo, de sua história e ancestralidade e de seus moradores (pessoas “comuns”, mas também de perfil socialmente estigmatizado, como prostitutas, artistas, curandeiros, etc.), os quais participam de um forte sentimento comunitário de pertencimento e são resilientes frente ao ataque infligido sobre sua gente. Além disso, frente à realidade brasileira, onde os números de violência atingem dimensões de guerras internacionais, simplesmente negar ou omitir a existência desse problema crônico e prioritário também pode não ser o melhor caminho.

Do fim ao começo
Sob ataque, a comunidade rapidamente se articula, recorrendo à sensibilidade e conhecimentos de sua gente e à própria ancestralidade, para subverter a lógica fatídica que se delineia em seu horizonte frente aos ataques inesperados deflagrados. Poderia ser um futuro distópico, mas, diante do atual cenário político nacional, não é. Nesse povoado estranho, mas, ao mesmo tempo, tão próximo de nós, as fragilidades e ambições humanas são desveladas.

Vim aqui só pra dizer
Ninguém há de me calar
Se alguém tem que morrer
Que seja pra melhorar
Tanta vida pra viver
Tanta vida a se acabar
Com tanto pra se fazer
Com tanto pra se salvar
Você que não me entendeu
Não perde por esperar

Os versos de Geraldo Vandré em Réquiem para Matraga, associados ao texto da placa de sinalização que aparece nos primeiros frames da película (“Bacurau 17 km, se for, vá na paz”), completam o mosaico da insurreição composta ao fim do filme. Num momento em que o cinema brasileiro enfrenta ameaças para dar continuidade a seus projetos, Bacurau demonstra a potencialidade das artes num país que pouco se vê nos seus meios de comunicação, em especial na televisão aberta, meio preferido da população brasileira para se informar. Permitir-se tocar pelos sentidos que o filme evoca, refletir sobre até que ponto a ficção representa a realidade e, especialmente, se situar sobre o estado de coisas em que nos encontramos enquanto nação (em qualquer que seja o rincão do Brasil) – este talvez seja um dos principais legados de Bacurau.

E o jornalismo?
Até aqui, as repercussões sobre a cobertura jornalística em torno de Bacurau preferem tratar do longa a partir de sua associação à participação da atriz Sônia Braga na obra e aos prêmios (indicados acima) que a película já recebeu em festivais internacionais. Ao adotar essa postura, no entanto, o jornalismo deixa passar ao largo uma importante problematização que interessa a toda a sociedade alinhada aos princípios da democracia e que poderia ser suscitada a partir da inserção da obra no circuito dos cinemas brasileiros: a ingerência do atual governo sobre a Agência Nacional de Cinema (Ancine) quanto à distribuição de recursos para projetos cinematográficos.

Hoje, ao querer arbitrar sobre as produções a serem contempladas ou não com recursos, o governo promete acionar filtros que cortam verticalmente a diversidade da produção cultural do país, suprimindo espaços e formas de expressão autênticos e que, talvez, se oponham à sanha discriminatória e repleta de não virtudes que conforma o perfil da atual administração federal. Se os produtores de Bacurau tivessem de buscar incentivos junto à Agência neste 2019, com toda a certeza o longa seria sumariamente esquecido no fundo de uma gaveta. É no mínimo contraditório que a equipe do filme, que está representando o Brasil em festivais de cinema mundo afora, seja alvo de tentativas de silenciamento e apagamento: é reconhecido lá fora como representante internacional do Brasil, mas, aqui dentro, busca-se ocultá-lo, fingir sua inexistência.

Entre críticas ácidas e elogios vibrantes, Bacurau segue em cartaz em cinemas de todo o país, como possível símbolo da insistência na crença de um Brasil cuja força está nas pessoas, ainda que de costas para a educação, a arte, a cultura, o conhecimento. Como muitos críticos já alertaram, talvez uma análise mais apurada sobre o filme só possa ser feita depois de algum tempo, quando as referências à conjuntura não sejam mais tão evidentes como no atual contexto. De todo o modo, apenas na produção jornalística mais segmentada, cujo acesso é ainda restrito no país, se tem espaço para um debate mais oxigenado e frutífero em torno das produções cinematográficas nacionais – o que depõe contra o jornalismo e sua própria responsabilidade social frente ao interesse público.

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REFERÊNCIA
SCHWARCZ, Lilia. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

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Janaíne Kronbauer dos Santos é doutoranda no PPGJOR/UFSC e bolsista Capes.
Magali Moser é doutoranda no PPGJOR/UFSC e bolsista Fapesc – especial para objETHOS.