Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Berlinale 2021 – Uma odisseia no streaming

Festival Internacional de Cinema de Berlim estreia online com narrativas híbridas, pornografia viral e Oscar de Melhor Futuro para o botão fast forward de vídeo 8x

Em meio a maior crise mundial — e também do cinema — de todos os tempos, a 71ª edição do Festival Internacional de Cinema de Berlim, a Berlinale, terminou na última sexta-feira, 5 de março, com um feito histórico. Depois de sete longas décadas, o evento anual foi realizado, pela primeira vez, em versão totalmente online, devido à pandemia.

Mesmo conhecida, desde 1951, pela proposta inovadora, ousada e rebelde, a Berlinale encarou dificuldades e desafios imensos em 2021. Outros grandes festivais do gênero optaram por adiar a realização ou, simplesmente, cancelaram as edições do ano.

Depois de participar de tantas Berlinales presenciais, esta foi uma experiência única e instigante para mim: espécie de avant-première do futuro dos festivais internacionais de cinema. A prévia futurista me permitiu vislumbrar novas formas de definir cinematografia, produzir longas e, sobretudo, assistir a filmes. Inexorável o tal futuro. Promissor, apesar dos aspectos negativos.

O novo cinema em cartaz nas plataformas digitais, com distribuição via streaming, parece democratizar a experiência da sétima arte com a co-direção do espectador. Na versão à distância, o cinema-sem-sair-de-casa ganha versão mobile, promessa de futuro remoto em que o grande formato cabe no bolso.

Para a maior parte das pessoas, assistir a filmes em sala de cinema sempre foi uma experiência social, coletiva, em grupo de amigos ou na companhia de meros desconhecidos — indiferentes ou incômodos —, formando o público de cada sessão. Não para mim. Nunca mera diversão, passatempo ou desculpa para comer pipoca.

Cinema é coisa séria, quase religião, exige estudo e reflexão. Minha relação com o cinema ainda é ritualizada, reverencial, mística e, acima de tudo, solitariamente imersiva. Acredito estar vivendo o roteiro narrado na tela (ou, então, não é cinema) ao mergulhar na realidade digital paralela, com duração e ritmo ditados pelos diretores do filme.

Agora, tudo mudou!

O futuro do cinema já chegou

Até aqui, uma projeção cinematográfica realizada em sala sagrada de cinema, não oferecia aos espectadores alternativas para escolher como ver o filme. Aos que não se submetiam ao ritmo imposto da narrativa até o final da exibição, restava levantar no meio do filme e sair ou dormir na cadeira (com sorte, sem roncar).

Não havia meio termo.

Em razão disso, assistir a tantos filmes no cinema, durante os festivais internacionais, podia ser um deleite ou verdadeira tortura. Principalmente, em se tratando de filmes considerados experimentais, herméticos e inovadores. A produção cinematográfica contemporânea tendia a ser muito longa e chata. Como na vida real, não era possível acelerar os piores momentos, ralentar os melhores ou congelar um instante.

A Berlinale online, no entanto, aponta um novo futuro para o cinema pós-pandemia: mescla de filme com TV digital e internet. O modelo online do festival reinventou o compasso cinematográfico ao passar o bastão do controle remoto para os primeiros espectadores (críticos), que puderam apreciar bons filmes no próprio tempo, literalmente: acelerando, ralentando ou pausando de vez filmes ruins, lentos e chatos.

Talvez, o público em geral possa fazer o mesmo. Afinal, aqui entre nós, por melhor que seja, ninguém merece filme com mais de 8 horas (repito, 8 horas!) de duração. São verdadeiras torturas cinematográficas e jornalísticas.

Repito, ninguém merece.

Crítica especializada x audiência qualificada

Nem todo mundo gosta desta ideia, digamos, intervencionista. É óbvio que os cinéfilos puristas condenariam a licença poética pós-finalização da obra. Acontece que a sétima arte é dominada por interesses muito poderosos e, historicamente, o público tem sido visto como mera audiência a ser ignorada, em vez de, conquistada.

São poucos os realizadores sábios, capazes de fazer uma autocrítica, lavando em consideração a plateia. Seja por não ser suficientemente forte em termos quantitativos ou por ter pouca relevância, qualitativamente falando. Os ditames da pequena crítica especializada costumam decidir o sucesso ou o fracasso de tantos filmes.

Além disso, conseguir credenciais para participar presencialmente de um festival como a Berlinale é saga na qual poucos se aventuram. Muito poucos. Agora, porém, com o sistema híbrido de projeções presenciais e streaming digital, é possível aumentar o volume de críticos e ainda incentivar a participação do público de forma muito mais consistente nos festivais internacionais de cinema.

O presencial vai continuar a existir sempre em sua forma teatral tradicional, com filmes em grandes telas de caríssimas e restritas salas de projeção. Mas daqui em diante, milhões de pessoas passarão a ter a oportunidade de compartilhar essa experiência cinematográfica nas redes digitais.

Grandes mudanças no festival

Nunca assisti a tantos filmes em tão pouco tempo. As produções selecionadas pelos organizadores da Berlinale ficavam disponíveis para os jornalistas credenciados apenas durante 24 horas. Também não precisei enfrentar as longas filas para as sessões do festival presencial, no frio intenso do inverno em Berlim, para assistir a menos filmes e em tempo restrito.

Mas confesso: assisti a diversos deles em ritmo próprio e velocidades alternativas, com interrupções e imersão limitada (ou duvidosa). A realidade da vida cotidiana, em regime home office, se impõe e insiste em invadir a cena e roubar o tempo sagrado das projeções nos novos festivais online. Apesar das inovações tecnológicas, velhos problemas técnicos ainda acontecem com regularidade. Saldo de pontos: positivo.

TOP 5 da Berlinale 2021

Natural Light
Direção: Dénes Nagy
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Bad Luck Banging or Loony Porn
Direção: Radi Jude
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Ballad of a White Cow
Direção: Behtash Sanaeeha e Maryam Moghaddam
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Mr. Bachman and his class
Direção: Maria Speth,
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Je suis Karl
Direção: Christian Schwochow
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Roteiro de indicações

Esta edição da Berlinale teve filmes excelentes, como Mr. Bachman and his class, sobre o dia a dia escolar e desafios de um velho professor devotado aos alunos, filhos de imigrantes, numa pequena cidade alemã.

Foto: Divulgação/Mr. Bachman and his class

Obra-prima do cinema documentário, mas nada justifica quase 4 horas de duração. Faz falta bom produtor executivo com distanciamento profissional para defender o tempo do público, dizendo ao genial diretor que está longo, muito longo!

Nada contra desistir do cinema e criar séries de TV com muitos capítulos e tantas temporadas. Ainda bem que agora com a projeção digital em streaming, tenho a preciosa opção de acelerar em 8x o ritmo normal de exibição.

Heresia? Atentado à obra? Insisto: o filme ficou muito melhor com a minha edição pessoal com 2 horas.

Nem todos os filmes foram tão longos, felizmente. Entre os mais inovadores, criativos e muito polêmicos, está a comédia romena Bad Luck Banging or Loony Porn.

Foto: Divulgação/Bad Luck Banging or Loony Porn

A produção irreverente, vencedora de merecido Urso de Ouro, resume muito bem os novos tempos de crise pandêmica. Autoclassificada como pornográfica, a história da professora cujo vídeo com suas proezas sexuais vazou na internet, retrata os perigos digitais e a cultura de cancelamento (unfollow) das redes sociais.

O julgamento final da professora, pelos pais da escola, é um momento do cinema político bem humorado e provocador.

Afinal, o que é educação, privacidade e principalmente pornografia na era digital? O diretor não escondeu nada. Poucas vezes assisti cenas de sexo tão fortes e explícitas.

Natural Light, o favorito

O meu filme favorito foi a produção húngara Natural Light, vencedor do Urso de Prata de Melhor Direção.

Foto: Divulgação/Natural Light

O filme denuncia a participação de tropas húngaras na invasão da União Soviética, na Segunda Guerra Mundial, e o extermínio de russos em apoio aos aliados alemães.

Tema ainda polêmico e sensível para diversos países da Europa oriental que preferem ignorar ou apagar o passado.

A fotografia e a recriação de época contribuem para a interpretação minimalista, mas intensa dos atores. Direção segura e tempo certo.

Imperdível em velocidade normal.

Destaco também a produção iraniana Ballad of a White Cow.

A história é sobre uma mulher diante da prisão e execução do marido inocente. O drama é muito bem dirigido, duração justa e faz jus à longa tradição de militância e denúncia dos cineastas iranianos.

Por último, recomendo um filme que não estava na mostra competitiva e não foi muito comentado pela mídia: Je suis Karl (Eu sou Karl).

Com título sugestivo, a super produção alemã retrata os novos movimentos da extrema direita europeia, que se aproveita das redes sociais para recrutar e mobilizar os jovens, fomentando políticas racistas e contrárias à imigração.

O filme, muito bem produzido, é alerta sobre as ameaças do populismo de direita capaz de transformar a Europa de amanhã no tão trágico e violento Brasil de hoje.


8x cinema

Pena a vida real no país, em plena pandemia, sem vacinas, sem cinema, tão lento e desgovernado, não ter este recurso do fast forward em vídeo para acelerar o futuro na velocidade de 8x.

Quem sabe um dia?

Uma coisa é certa: o cinema, os festivais e o mundo nunca mais serão os mesmos, embora todos sigam relevantes em versão presencial ou digital.

A arte tem o dom de nos apontar futuros possíveis.

***

Antonio Brasil é jornalista e professor convidado/pesquisador do Instituto Erich-Brost de Jornalismo Internacional da Universidade de Dortmund na Alemanha.