Um bom festival de cinema é como bom vinho. Tem que se apreciar com tempo e muito cuidado.
Depois de alguns meses, creio que já é possível analisar os resultados e tendências do maior festival de cinema do mundo, o festival de Berlim, conhecido como Berlinale.
As narrativas de refugiados, os marcos de autor de diretores e o cinema estranho dominaram a 67ª edição da Berlinale, que exibiu ao público 365 filmes em dez dias de festival, de 9 a 19 de fevereiro deste ano. A cada edição, o Festival Internacional de Berlim reafirma seu papel político e social, com seu programa tornando-se rapidamente o mais vasto e atual do cinema mundial contemporâneo. Consagrada como o maior e talvez o melhor festival de cinema do mundo, a Berlinale é uma instituição complexa (como todos os eventos do gênero) que exige certo tempo e preparação para produzir uma análise com um olhar mais crítico e que fuja da imediatez tão presentes nos dias – e no jornalismo – atuais.
O festival nasceu em 1950 como tentativa de impulsionar a reconstrução de uma Alemanha devastada (e ainda dividida) pela guerra. Por isso, sua identidade alternativa, proclamada por muitos como, inclusive, revolucionária, sempre foi um adjetivo de peso e motivo de orgulho para a organização. No entanto, ao alcançar o tamanho e a importância devidas, assim como sua inclusão no mais seleto e prestigioso circuito do mundo cinematográfico, parece que a edição de 2017 da Berlinale causou divergências entre o público especializado.
Para alguns, o festival perdeu sua origem “underground”, tornando-se demasiadamente voltado para o mercado. Outros, mais duros, chegaram a considerá-lo “decante” no cenário mundial. Aos críticos, no entanto, o diretor do Festival de Berlim, Dieter Kosslick, tem uma resposta pronta: chequem os números.
E o fato é que os números traduzem o sucesso do maior festival de cinema do globo. Em dez dias de intensa programação e com um orçamento anual de 24 milhões de euros, a Berlinale exibiu 365 filmes ao público em mais de mil projeções, vendeu mais de 330 mil ingressos e contou com quase meio milhão de espectadores circulando por suas treze mostras. 3.716 jornalistas de 79 países acompanharam não apenas a competição principal, mas também outras doze categorias paralelas que aconteciam simultaneamente, entre elas a aclamada mostra Panorama.
Tendências e polêmicas
Contrariando muitos críticos, a Berlinale comprovou que não perdeu seu olhar crítico e seu caráter político-revolucionário. Pelo contrário, na coletiva de imprensa há poucos dias da abertura de sua 67ª edição, Kosslick declarou que o então recém-eleito presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, seria deliberadamente omitido durante toda a programação. Uma decisão política, sem dúvida, ainda que a opção escolhida seja o protesto silencioso. Decisão esta que, muitas vezes, produz mais efeito do que críticas raivosas lançadas ao vazio.
O filme escolhido para dar o arranque inicial da Berlinale 2017 foi a produção francesa Django, dirigido por Etienne Comar, um longa de conteúdo político que retrata a controversa relação do músico de jazz Django Reinhardt com o governo nazista. É, mais ainda, uma análise de como os artistas respondem aos sistemas autoritários. “Nosso programa já é um protesto suficiente”, se limitou a dizer Kosskick na coletiva de imprensa. E a abertura mostrou-se, de fato, a dimensão desse protesto.
Aliás, vários outros filmes do programa tocam no sensível campo da política e suas artimanhas, além de trazerem à luz debates sobre direitos humanos, as consequências da globalização, revoltas sociais, crise dos refugiados e o narcotráfico. A maioria deles não se privou de fazer declarações claras, duras e precisas contra a exclusão e o ódio.
Também dentro do programa, o público teve a chance de ver em ação o mestre finlandês Aki Kaurismäki e o cineasta belga Philippe Van Leeuw. Ambos ofereceram lentes diversas e igualmente convincentes para a crise dos refugiados sírios, enquanto Agnieszka Holland, com Spoor, e Ildikó Enyedi, com On Body And Soul, entregavam retratos cômicos, lindos e bizarros de mulheres modernas.
Por certo, esta última diretora, Ildikó Enyedi, levou para casa o Urso de Ouro 2017 com o longa húngaro On Body And Soul. O Júri, que teve este ano o cineasta holandês Paul Verhoeven em sua cabeceira, reconheceu o mérito da inusual narrativa de Enyedi, que nos apresenta uma história de amor que floresce e se desenvolve tendo como cenário um matadouro.
Sexo, gênero e ironias
As obras homossexuais e trans-temáticas também tiveram uma forte representatividade nesta edição, provenientes do Japão, África do Sul e Chile. Talvez a mensagem mais inteligente tenha chegado na forma de Call Me By Your Name, de Luca Guadagnino, sobre o romance veranil de dois jovens nos anos 1980 e suas afinidades comuns pela arte, pela música e pela comida. Abordando o tema com uma delicada sofisticação e subjetividade, o recado do diretor é que, para além das questões da homossexualidade, há muitas outras formas de sensibilidades a serem exploradas.
Algumas produções foram recebidas com especial atenção e entusiasmo particular por jornalistas estrangeiros, como Una mujer fantástica, do chileno Sebastián Lelio, e que reproduz na telona as humilhações e os preconceitos sofridos por uma garçonete transexual e aspirante à cantora lírica que tenta participar do funeral do companheiro morto. Não se pode deixar de destacar a magistral interpretação de Daniela Vega, atriz transgênero na vida real.
Há ainda The other side of hope, do finlandês Aki Kaurismaki, uma comédia dramática de tons surrealistas que coloca um refugiado sírio e um comerciante de Helsinki em sintonia na construção de uma sociedade mais justa.
Olhos mais atentos também podem identificar o contexto político nas entrelinhas do drama de fundo moral The dinner, do estadunidense Oren Moverman, assim como sob o viés da ironia ácida de The party, da britânica Sally Potter.
Além disso, o festival trouxe nesta edição um expressivo número de filmes que recorrem a fatos ou personagens históricos para tentar entender o complexo momento atual. The young Karl Marx, de Raoul Peck e exibido fora da competição, recorre à biografia do pensador do século XIX para lembrar que as grandes utopias falharam.
Viceroy’s house, de Gurinder Chadha, nos remete a 1947, quando a Inglaterra devolve a Índia ao governo local, depois de mais de 300 anos de colonização. Já os brasileiros Vazante, de Daniela Thomas, e Joaquim, de Marcelo Gomes, retornam ao Brasil colônia do século XVIII. E, ainda, o documentário No intenso agora, de João Moreira Salles, analisa os movimentos de Maio de 1968.
Brasil na Berlinale.
Este ano, houve uma presença recorde de produções brasileiras, somando doze obras distribuídas nas mostras Panorama, Curtas, Generation e Fórum. Pendular, de Julia Murat, recebeu o prêmio da crítica na Panorama, porém, a nossa participação não contou com nenhuma outra premiação ou menção.
Entre as polêmicas deste ano estava o debate sobre as séries de televisão e se estas produções devem ou não fazer parte dos festivais de cinema. A obra sobressaliente e que entrou para a memória de muitos – e certamente para a história “berlinalesa” – foi a série da BBC sobre a Segunda Guerra Mundial, SS-GB, um drama fictício que planteia um possível cenário mundial caso o Reino Unido tivesse perdido a Batalha da Grã-Bretanha.
Baseada na novela homônima do escritor Len Deighton, de 1978, a obra estabelece uma linha do tempo alternativa de 1941 e visualiza como seria a configuração global se o Reino Unido tivesse sido ocupado pelos nazistas.
Imaginando os primeiros meses depois da vitória e posterior ocupação alemã da Inglaterra, a série faz um ótimo trabalho na criação de uma atmosfera de mistério capaz de entreter qualquer espectador. O suspense aumenta ainda mais quando decidem aliar a perspectiva histórica com a já batida – porém eficaz – fórmula britânica de criar narrativas: um estranho assassinato precisa ser resolvido por um policial brilhante que, conforme avançam os dias e os fatos, se torna alvo de dúvidas por conta de sua personalidade enigmática.
Com uma direção de arte incomum e uma sólida produção, o espectador se vê envolvido na trama tentando decifrar esse misterioso detetive da Scotland Yard, que poderia ser tanto um herói nacional como um traidor perpetrador do regime nazista.
Aos críticos do festival, uma notícia decepcionante: longe de tornar-se um festival de mercado, a Berlinale chegou em 2017 com uma força política que há muito não se via. Não somente os números, mas também a seleção de obras que compuseram o programa, deixam uma mensagem clara: política e resistência não se constroem apenas com declarações. O silêncio fala, as imagens falam, as canções falam, as disposições dos elementos na tela falam. Resta aos espectadores saber aguçar os sentidos para conseguir decodificar os pequenos sinais que através de uma variada gama de canais além das palavras.
E aguardem nos próximos dias mais reflexões e dicas sobre a Berlinale deste ano e dos próximos.
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Antonio Brasil é jornalista, com colaboração de Nayara Batschke.