Os jovens diretores tik-tokers não acreditarão que um filme em preto-e-branco de 1991, contando a viagem de trem do irmão de17 anos para levar o irmãozinho de 7 anos para morar com o pai, pode ser um dos mais emocionantes da Mostra. É o que acontece nos 98 minutos do filme russo “Bratan, O Irmão”, de Bakhtyar Khudojnazarov, restaurado pelo amigo alémão Veit Helmer, sete anos depois da morte do cineasta. É quase uma lição de como fazer cinema com uma história simples contada do começo ao fim, luz e fotografia fantásticas, bons atores , bons diálogos, e tomadas excitantes às vezes apenas com as curvas de um trem. Sem pirotecnias, apelação, efeitos especiais, sentimentalismos. Uma ode ao amor pela arte no cuidado do restauro da obra de um grande cineasta, respeito à cultura do país preservando sua memória. “Não se pode dizer que o filme se baseou na minha biografia”, disse Khudojnazarov na época do lançamento, “mas é fruto de minhas emoções e experiências pessoais”.
“Bratan” retrata uma infância pré-celular numa cidadezinha do Tajiquistão, onde as brincadeiras são jogar pedra nos caminhões que passam, andar de bicicleta, joguinhos de mão, cavalos, amigos ao vivo. Farukh e seu irmão Azamat (“Pamonha”) moram com a avó depois da separação dos pais, o mais velho fazendo as vezes de pai e mãe do garoto. Mas Farukh decide que quer liberdade e ganhar dinheiro, então leva o irmão numa trepidante vagem de trem entre montanhas, cidades e vilarejos esquecidos e paupérrimos do Tajiquistão. O objetivo é deixar o irmãozinho com o pai, mas nem tudo acontece como ele deseja. Chegam, de surpresa, na casa do pai, médico, na fronteira do Afganistão, e não encontra o que esperavam.
Khudojnazarov nasceu quando a União Soviética englobava o Tajiquistão. Era jornalista de rádio e televisão até 1984 quando decidiu cursar o famoso Instituto de Cinema de Moscou (VGIK). Dirigiu vários curtas e longas. Num deles, na comédia “Luna Papa” de 1999, Mamlakat de 17 anos sonha ser atriz e se deixa seduzir por um homem que se diz amigo de Tom Cruise. Por este e outros filmes ganhou o Leão de Prata no Festival de Veneza, prêmios em Toronto e Roterdam, e foi membro do júri no Festival de Moscou no ano 2000. Ficou doente e morreu em Berlim em 2015, aos 49 anos.
O road-movie “Bratan, O Irmão”, é seu primeiro longa, lançado dois anos depois da formatura em cinema, e ganhou vários prêmios internacionais. O cineasta tinha 25 anos. Dois anos depois, foi morar em Berlim e continuou a filmar sempre focando suas origens, numa das vezes criando uma cidade inteira no deserto da Ásia Central no filme que remete à atmosfera poética do cineasta e músico sérvio, Emir Kusturica.
O amigo alemão Veit Helmer passou anos recolhendo e organizando a filmografia de Khudojnazarov. Finalmente, conseguiu o apoio da distribuidora alemã Wild Bunch. “Resolvemos dar uma segunda vida à obra de Khudojnazarov”. O esforço de Helmer não foi em vão, “Bratan” é uma verdadeira jóia.
Diante do descaso do governo com nosso acervo, cultura, a Cinemateca, artistas e cineastas, dá até vergonha aos brasileiros ver este filme russo de 1991 restaurado. Vergonha ou revolta, mas, quem sabe? Garra e gatilho para salvar nossa memória.
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Norma Couri é jornalista e Diretora de Inclusão Social, Mulher e Diversidade na Associação Brasileira de Imprensa (ABI).