Um jovem médico de 28 anos, mobilizado,em 1971, para a guerra colonial portuguesa em Angola, onde se defronta com seus horrores e desolações, escreve cartas para sua esposa em Portugal, relatando sua solidão naquele meio hostil.
Essa a síntese do filme português Cartas da Guerra, de Ivo M. Ferreira, selecionado para a competição internacional no 66º. Festival de Cinema de Berlim. Porém, não são tão simples e nem anônimas essas cartas, pois foram escritas por quem ainda não era mas se tornou o mais importante escritor português contemporâneo, Antonio Lobo Antunes.
Antes de se tornarem filme, as cartas tinham sido reunidas num livro pelas filhas do casal, já que a esposa à qual eram endereçadas as cartas, escritas de 1971 a 1973, falecera em 1976.
No prefácio, escreveram as filhas: “As cartas deste livro foram escritas por um homem de 28 anos na privacidade da sua relação com a mulher, isolado de tudo e de todos durante dois anos de guerra colonial em Angola, sem pensar que algum dia viriam a ser lidas por mais alguém. Não vamos aqui descrever o que são essas cartas: cada pessoa irá lê-las de forma diferente, seguramente distinta da nossa. Mas qualquer que seja a abordagem, literária, biográfica, documento de guerra ou história de amor, sabemos que é extraordinária em todos esses aspectos (…) Este é o livro do amor dos nossos pais, de onde nascemos e do qual nos orgulhamos. Nascemos de duas pessoas invulgares em tudo, que em parte vos damos a conhecer nestas cartas. O resto é nosso.” Maria José Lobo Antunes e Joana Lobo Antunes.
Aguçando nossa curiosidade sobre esse filme ainda inédito com estréia em Berlim, a produtora do filme Som e Fúria, acrescenta algumas indicações sobre o autor das cartas: “Longe de tudo que ama, escreve cartas à mulher à medida que se afunda num cenário de crescente violência. Enquanto percorre diversos aquartelamentos, apaixona-se por África e amadurece politicamente. A seu lado, uma geração desespera pelo regresso. Na incerteza dos acontecimentos de guerra, apenas as cartas o podem fazer sobreviver.”
O realizador Ivo M. Ferreira é da geração pós-guerra colonial, nasceu em setembro de 1975, alguns meses depois da Revolução dos Cravos e da independência das colônias. A realização do filme também encerra uma história de amor: a atriz que vive Maria José, esposa do escritor, é Margarida Villa-Nova, esposa do realizador .
***
Rui Martins é jornalista e escritor. Vive em Berna, Suiça e cobrirá o Festival de Berlim (Berlinale), no início de fevereiro.