Depois de dois anos difíceis de pandemia, a cidade suíça de Locarno recoloca em função seus projetores de filmes e ressurgem as oito mil cadeiras no maior cinema ao ar livre do mundo, a Piazza Grande. É verão na Suíça, o clima é de férias inteligentes e culturais, as noites são quentes e praticamente não chove nos dez dias dedicados, há 75 anos, à sétima arte.
O Festival de Locarno é consagrado ao cinema de autor e são 226 filmes, a quase totalidade inéditos, repartidos em diversas seções e exibidos nos sete cinemas da cidade ticinesa suíça, onde se fala italiano, entre as quais se sobressaem a Competição Internacional, a Competição Cineastas do Presente e os curtas e médias metragens concorrendo como Leopardos de Amanhã.
Criados em 1946, os prêmios do Festival têm o nome de Leopardos. Por ali já passaram grandes cineastas como Claude Chabrol, Stanley Kubrick, Paul Verhoeven, Miloš Forman, Raoul Ruiz, Alain Tanner, Mike Leigh, Béla Tarr, Chen Kaige, Edward Yang, Alexandre Sokourov, Atom Egoyan, Jim Jarmusch, Spike Lee, Gregg Araki, Abbas Kiarostami, Pedro Costa, Fatih Akın, Claire Denis, Kim Ki-duk ou ainda Gus Van Sant.
Júlia Murat
Na competição existe o novo filme de Júlia Murat, cuja presença é esperada nos próximos dias. Me lembro de Júlia, quando mostrou, há cinco anos, seu filme “Pendular” na Berlinale, na mostra Panorama, e ganhou o prêmio da Federação Internacional de Críticos de Cinema, FIPRESCI. Na época, aqui no Observatório da Imprensa publicamos: “Pendular mostra as relações entre uma dançarina e um escultor e o significado de suas diferenças artísticas. Um tratamento filosófico de gênero, original, de jovens boêmios à beira da meia-idade”. E o júri definiu as razões do prêmio: “Pendular” foi escolhido por sua excepcional qualidade visual e sua força narrativa, que resultam num retrato preciso de dois artistas contemporâneos. A expressão da coreografia moderna e arrojada das relações humanas na história se une perfeitamente à originalidade estética e dramatúrgica do filme.”
Há, por isso, boas expectativas diante do seu novo filme “Regra 34”, uma coprodução com a França. Sem coprodução não é mais possível se fazer cinema no Brasil, onde não há mais verbas para a cultura e onde o preconceito religioso elimina tudo que não for gospel ou de inspiração evangélica. Em todo caso, o novo filme de Julia Murat, só pelo enredo, provocaria convulsões na pudica ex-ministra evangélica Damares Alves, dos Direitos Humanos, Mulher e Família. É a Unifrance quem se encarrega da divulgação do filme em Locarno, com a produtora Esquina. Vieram com Júlia as atrizes Sol Miranda e Isabela Mariotto, mais o ator Lucas Andrade.
“Simone, 28 anos, é uma jovem advogada negra que passou anos fazendo performances online de sexo para pagar a faculdade de direito. Ela acabou de passar em um concurso para defensoria pública, abandonando as performances por não precisar mais do dinheiro. Sua nova rotina consiste em aulas em um curso preparatório para defensoria, o acompanhamento de sessões de acolhimento às mulheres vítimas de violência doméstica e aulas de kung fu com Lucia, uma amiga branca da faculdade de direito. Juntas elas compartilham ideias feministas e a vontade de usar a prática do direito para modificar a sociedade”. Voltaremos à sequência do enredo às vésperas da exibição do filme em Locarno, programado para o próximo dia 10.
Ana Vaz
Na competição Cineastas do Amanhã, o filme “É Noite na América”, em coprodução com a França e Itália. Embora jovem com 36 anos, Ana Vaz tem um importante percurso internacional, como mostra seu currículo nos sites especializados.
Ana é uma artista e cineasta cujos filmes e trabalhos especulam sobre as relações entre o eu e o outro, o mito e a história em através de uma cosmologia de signos, referências e perspectivas. Montagens de material filmados e encontrados, seus filmes combinam etnografia e especulação na exploração das fricções e ficções inscritas nos ambientes naturais e assim construídos. Ela é graduada pelo Royal Melbourne Institute of Technology e do Fresnoy-Studio National des Arts Contemporains.
Vaz também foi membro da SPEAP (SciencesPo School of Political Arts), num projeto idealizado e conduzido por Bruno Latour. Seu trabalho é exibido regularmente em todo o mundo: New York Film Festival, TIFF Wavelengths, CPH:DOX, Videobrasil, Courtesan, Cinéma du Réel, Lux Salon. Em 2015, recebeu o Kazuko Trust Award apresentado pela Film Society of Lincoln Center, em reconhecimento à excelência artística e inovação de sua obra cinematográfica.
Servindo-se das manchetes do jornal Correio Braziliense, é a própria Ana Vaz quem descreveu seu filme no resumo das exibições publicado pelo Festival: “Filmado inteiramente de dia para noite, o eco-horror da vida selvagem segue as trajetórias de espécies ameaçadas que fogem para escapar da extinção, em uma trama sombria em que os animais olham para nós”.
E seguem as manchetes probatórias: “Jovem tamanduá encontrado morto à beira de uma estrada, uma jibóia perambula pelos subúrbios de Taguatinga, um lobo-guará é encontrado em uma fazenda em Sobradinho II, uma pequena coruja é resgatada no bairro Centro de Rádio, uma capivara nada em as piscinas do Palácio do Itamaraty. A questão é: os animais estão invadindo nossas cidades ou estamos ocupando seu habitat?”
Carlos Segundo
Professor de comunicação social audiovisual na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, doutor em cinema pela Unicamp, fotógrafo, roteirista e cineasta, Carlos Segundo tem seu curta-metragem “Big Bang” concorrendo na mostra Leopardos de Amanhã. É a história de Chico que, em Uberlândia ganha a vida consertando fornos, nos quais cabe facilmente graças ao seu pequeno tamanho. Desconsiderado e marginalizado por uma sociedade que o odeia, Chico começa a resistir.
No ano passado, Segundo já esteve na mesma mostra, no Festival de Locarno, com seu curta-metragem “Sideral”. “Big Bang”, produzido por O Sopro do Tempo e Les Valseurs, será distribuído no Brasil pela empresa potiguar Casa da Praia Filmes.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.