Esta semana aconteceu um dos maiores eventos cinematográficos e jornalísticos no campo cultural: o Festival Internacional de Cinema em Cannes, na França. Ainda neste semestre, tivemos o privilégio de participar de mais uma edição do Festival de Cinema de Berlim, a Berlinale.
Esses verdadeiros espetáculos midiáticos foram manchetes em quase todos os jornais, destaque nos grandes veículos de comunicação e nas redes sociais de todo o mundo. O público ainda acompanha com grande interesse os lançamentos cinematográficos, as entrevistas com celebridades, as críticas dos especialistas e, principalmente, o glamour desses encontros internacionais dos apaixonados pelo cinema.
Ao contrário da maioria dos críticos de cinema, costumo esperar alguns meses para avaliar a produção cinematográfica apresentada em grandes festivais internacionais, como a Berlinale. Também espero pela divulgação dos fatos e números oficiais fornecidos pelos organizadores para analisar as tendências, fazer comparações entre os festivais e, em seguida, compartilhar com o público. Este ano não foi diferente. Afinal, podemos estar diante do fim dos grandes festivais internacionais de cinema, do próprio cinema ou, como preferem dizer os novos diretores da Berlinale, 2020 deve ser o ano de um “novo começo”.
É, pode ser.
Cinema e jornalismo
Afinal, não são somente o jornalismo e atividades culturais congêneres que estão em crise. Será que ainda há lugar no cenário cultural e midiático para esses enormes e caríssimos festivais de cinema? Será essa mais uma crise passageira ou estamos diante do fim do cinema enquanto manifestação artística, política e cultural? Ou será que a crise só afeta o cinema autoral, diferenciado, aquele filme que nos faz pensar ou refletir – e não o cinema blockbuster no estilo Marvel, voltado prioritariamente para divertir ou alienar o público e obter grande sucesso de bilheteria?
Grandes festivais internacionais de cinema, como os de Veneza, Toronto, no Canadá, Locarno, na Suíça, e Sundance, nos EUA, dentre tantos outros, lutam para manter sua enorme importância e relevância cultural e econômica, mas enfrentam grandes dificuldades no presente e maiores desafios no futuro. Esses problemas também refletem as dificuldades da própria indústria cinematográfica diante das opções digitais para preservar um lugar de destaque no cenário internacional como expressão econômica, mas principalmente como expressão artística.
Em relação ao cinema tradicional e de qualidade, o problema parece muito grave. A experiência de assistir a um bom filme costumava estar ligada à presença física em um espaço público voltado para a discussão e compartilhamento social. Mas será que ainda faz sentido sair de casa e gastar muito dinheiro para ir ao cinema diante de tantas opções no seu televisor ou computador, no conforto e segurança do seu lar? Cinema deixa de ser uma experiência de socialização para ser uma experiência individualizada sem hora e lugar marcados para acontecer.
Mas, além desses problemas, os filmes de autoria e de qualidade que predominam ou deveriam predominar nos grandes festivais internacionais enfrentam a competição e hegemonia de blockbusters, os filmes de muitos recursos técnicos e financeiros, mas pouco conteúdo, voltados para o sucesso imediato e grandes lucros. Além dos blockbusters, o cinema de qualidade também enfrenta, quem diria, a velha televisão. Muito se discute sobre o lugar das séries de TV nos grandes festivais e novos produtores, como a Netflix, a Amazon e similares, seriam culpados pela crise do cinema e dos festivais. Quem diria que a velha TV, com as suas novas super séries, se tornariam uma ameaça cada vez maior para o cinema de qualidade. Ir ao cinema para ver um filme é cada vez mais um programa para velhos. E isso é muito perigoso para a própria sobrevivência da sétima arte.
E os grandes festivais de cinema ? Ainda justificam a participação de tantos jornalistas para assistir tantas produções, muitas delas irrelevantes e de qualidade duvidosa? Esses eventos custam grandes fortunas para os patrocinadores e para órgãos públicos em um período tão curto e para público tão restrito. Trata-se de um enorme desafio para os novos gestores dos festivais e do próprio cinema. O futuro exige mudanças.
Nesse cenário em transição, assim como o cinema, os grandes festivais internacionais de cinema que, no passado, eram eventos enormes e únicos, também enfrentam crise de identidade ou crise de utilidade. São eventos de grande repercussão internacional, mas custam caro e podem não atrair o público certo. Na cobertura jornalística da Berlinale, há jornalistas sempre presentes, mas esses jornalistas agora representam mais as novas mídias sociais do que os grandes veículos de comunicação.
Novos jornalistas e críticos de cinema
Durante a última Berlinale, pude conversar com jornalistas de vários países que trabalham para os mais diversos veículos de comunicação, dos mais tradicionais aos menores e mais novos ou inusitados, todos de diversas faixas etárias, cinéfilos e críticos veteranos e jovens iniciantes. O que mais me impressiona, primeiro, costuma ser a idade, cada vez mais jovens, e o “isolamento” ou individualidade desses “profissionais”. Assim como assistir às novas produções cinematográficas torna-se, para muitos, uma experiência individual e solitária, analisar e criticar os filmes exibidos nos festivais passa a ser uma experiência igualmente única, individualizada e solitária. Sim, eles vêm de muitos lugares do mundo, possuem um conhecimento enciclopédico do cinema, sabem muito, mas falam de forma muito objetiva, talvez até superficial, para poucos, embora muito fiéis. Assim como na produção cinematográfica atual, é a hiper segmentação da crítica cinematográfica. Alguns talvez falem somente para si mesmos.
Ainda sobre a crise, este ano marcou a despedida do diretor da Berlinale, Dieter Kosslick. Depois de 18 anos, ele foi substituído por uma dupla de novos gestores, o italiano Carlo Chatrian, ex-diretor do Festival Internacional de Cinema de Locarno, na Suíça, que será o diretor artístico, e a holandesa Mariette Rissembeek, ex-diretora de German Films, que assume a direção executiva. O festival de cinema de Berlim resolveu mudar. Depois de tantos anos privilegiando a quantidade de filmes em inúmeras sessões, com critérios pouco claros e transparentes, a nova Berlinale vai enfrentar um enorme desafio. O festival já foi referência principalmente política e jornalística, tendo primado pela qualidade, inovação e ousadia das produções selecionadas. A Berlinale sempre procurou estar antenada nas grandes temáticas internacionais, como as questões de imigração na Europa e o movimento feminista mundial.
A ênfase recente em sessões como gastronomia ou outras categorias polêmicas e pouco relevantes requer uma retomada drástica de valores e interesses para sobreviver. Mas, no fundo, a Berlinale parece ser vítima da sua própria grandeza, glamour e sucesso. Seu custo astronômico, bancado essencialmente por mega patrocinadores e pelo rico governo alemão, pode ter seus dias contados. Acredito que, no próximo ano, sim, teremos mudanças drásticas. Teremos certamente uma Berlinale mais enxuta, mas não necessariamente melhor. Afinal, em tempos de transição, é difícil definir “melhor” em qualquer área, jornalismo ou cinema, por exemplo.
Berlinale 2019: fatos e números
Os organizadores da Berlinale também destacam alguns pontos mais polêmicos da cobertura do festival em 2019. Como em anos anteriores, a enorme e nem sempre boa variedade de filmes oferecidos também atraiu críticas da imprensa. Os responsáveis pela Berlinale se defendem. “Como antes, os críticos não teriam levado em conta as condições reais de oferta e demanda. O excesso de escolha lamentado não foi percebido como tal pelo público em geral. Muito pelo contrário, na verdade: a fome de filmes parecia insaciável.” (Barbara Schweizerhof, der Freitag, edição 06/2019).
De qualquer maneira, os dados oficiais anunciados essa semana pela divulgação do Festival de Berlim em 2019 ainda impressionam. Como em anos anteriores, foram números recordes. O fim da era Kosslick registra quase 5 milhões de ingressos vendidos durante um total de 18 anos. E isso durante um período em que a infra-estrutura de mídia mudou completamente em todo o mundo. Em 2002, as plataformas de vídeo e mídia social e os serviços de streaming eram desconhecidos. Se você quisesse assistir a um filme, tinha que ir ao cinema, esperar que ele fosse transmitido na televisão ou ir até a locadora – uma instituição que, em 2019, devido à disponibilidade de filmes online, desapareceu quase completamente do mundo.
Ainda em 2019, apesar da crise e da cobrança de mudanças urgentes, durante os 10 dias do festival foram exibidos cerca de 751 filmes em 1060 sessões para um público estimado em quase 500 mil espectadores, com mais de 300.00 ingressos vendidos. Os convidados acreditados (excluindo a imprensa) foram 18.556, de 135 países. Sobre a cobertura jornalística, os números também são significativos. Foram 3.510 profissionais de 82 países e centenas de veículos de comunicação de todo o mundo. Sobre o custo do evento, é importante destacar que o orçamento anual do festival de Berlim ficou em 26 milhões de euros, considerando que a Berlinale recebe 8,2 milhões de euros em financiamento institucional do Comissário do Governo Federal para a Cultura e a Mídia.
Mudanças na Berlinale
A esse respeito, a iminente mudança na Berlinale está acontecendo ao mesmo tempo em que um terremoto estrutural está sendo experimentado em toda a indústria cinematográfica. John Hopewell e Elsa Keslassy chegaram ao cerne da questão: “Quando a história do cinema desta década for escrita, 2019 poderia ser um ponto de inflexão no equilíbrio de poder entre a indústria internacional tradicional e a construção desenfreada de novas plataformas OTT [over-the-top]. ”(Variety, 29 de janeiro de 2019). Há anos, os grandes players, como Netflix, Amazon, YouTube e Facebook, vêm investindo em seu próprio conteúdo, que pode ser acessado individualmente a qualquer hora e em qualquer lugar. Diante da pressão dos serviços de streaming, muitas pessoas consideram que nada menos que o futuro do cinema está em jogo. Porque a tendência para o conteúdo personalizado e o consumo do sofá doméstico é contrária à ideia do cinema como um espaço público e social, que obviamente também está ligado a interesses econômicos tangíveis e meios de subsistência.
O futuro é feminino?
Ainda sobre as tendências do cinema e dos festivais, a Berlinale em 2020 deve ter uma cara ainda mais feminina. Além da grande quantidade de filmes dirigidos por mulheres, agora a própria direção do evento está na mão compartilhada de uma mulher. Com grande experiência anterior na organização de festivais de cinema, a holandesa Mariette Rissembeekde é considerada uma mudança fundamental. Afinal, com uma carreira bem-sucedida, sua transferência para uma Berlinale em crise ou em transição pode, sim, garantir o tal “novo começo”. A crise e a necessidade de mudanças podem ser muito positivas e procuram reverter tradicionais injustiças, principalmente com as mulheres que cada vez produzem filmes melhores.
Em retrospectiva, fica evidente que 2019 já foi, acima de tudo, o ano das mulheres. Sua proporção na competição era extremamente alta em comparação com as taxas internacionais – sete dos 17 filmes que disputavam o Urso de Ouro eram dirigidos por mulheres. Rajendra Roy, membro do júri internacional, apareceu na conferência de imprensa com uma camiseta com o slogan “O FUTURO DO FILME É FÊMEA”. Isabelle Coixet e seu elenco espalharam sua mensagem no Photo Call com os fãs inscritos com “# MÁSMUJERES” – mais mulheres. O compromisso do festival com um papel mais forte para as mulheres foi bem recebido com euforia.
O Berlinale foi o primeiro grande festival de cinema a concluir uma abrangente avaliação de gênero de seu programa público, bem como a composição de seus cargos de gestão e comitês. “O maior sucesso de Berlim 2019 – e talvez o legado mais duradouro de Kosslick como diretor do festival – é que a igualdade de gênero na indústria cinematográfica é viável. Enquanto Cannes e Veneza se equivocavam e se irritavam, culpando a sociedade ou estruturas além de seu controle pela chocante falta de representação feminina em suas competições, Berlim, com eficiência alemã típica, acabou de fazer as coisas ”(Scott Roxborough, The Hollywood Reporter, 17 de fevereiro). 2019). O júri internacional também foi dirigido por uma mulher, Juliette Binoche. Em 2019, a Berlinale já havia alcançado a paridade de gênero em seus comitês de gestão e seleção.
Enquanto isso, a Retrospectiva apresentou uma taxa de participação feminina de 100%. Com o título “Autodeterminado – Perspectivas de Mulheres Cineastas”, foi dedicado ao trabalho artístico de mulheres na Alemanha em ambos os lados do Muro entre 1969 e 1999. A importância de tal retrospecção ficou clara para Susan Vahabzadeh: É claro que se pode argumentar que, em um mundo ideal, não deveria haver diferença entre se um filme é dirigido por uma mulher ou um homem; no entanto, no mundo em que vivemos, os homens inquestionavelmente cultivaram um olhar masculino ao longo dos 123 anos de história do cinema – e raramente voltam sua atenção para tópicos como o aborto ou os problemas dos pais solteiros; frequentemente olha para as clivagens, mas nunca para os efeitos psicológicos do câncer de mama ”(Süddeutsche Zeitung, 15 de fevereiro de 2019). A questão do papel das mulheres na indústria cinematográfica e no cinema foi explorada em detalhe ao longo das diferentes seções. O Fórum, por exemplo, enfocou o ativismo de vídeo feminista dos anos 1970. O significado dessa tradição para o presente dia foi explorado em profundidade durante uma discussão de oficina na cúpula verde silenciosa.
Ursos, robôs e o futuro do festivais
E o Urso de Honra de Ouro de 2019 também foi para uma mulher, uma das verdadeiras principais atrizes do cinema internacional: Charlotte Rampling. Quando perguntada sobre o que essa honra significava para ela, respondeu com sua própria ironia: “Festivais precisam de estrelas, e os mais velhos como eu são atraídos com tais prêmios. Eu não gosto de prêmios de conquistas para toda a vida. Mas, neste caso, me sinto muito honrada. E meu Urso de Prata [que ela ganhou em 2016, como melhor atriz, por 45 Anos, de Andrew Haigh] já perguntou: não podemos ter um de ouro também?” (em uma entrevista com Peter Zander, Berliner Morgenpost, 15 de fevereiro de 2019).
Em 2020, a Berlinale luta pela para recuperar sua identidade, sua própria razão de ser. Como Wieland Speck enfatizou em uma entrevista, “quanto mais difícil se tornou navegar no oceano de imagens em movimento, mais importante se tornou o trabalho dos programadores. […]”
Hoje, mais do que nunca, precisamos de cinema de qualidade e de festivais de cinema em que tanto conhecimento, gosto e compreensão política são incorporados por grandes equipes de profissionais altamente qualificados, como na Berlinale. O exemplo deveria ser ainda mais útil e necessário para outros países apaixonados pelo cinema, como o Brasil.
Afinal, na internet ou nos blockbusters, tudo ainda está muito misturado e confuso. Estamos diante de muitas mudanças e indefinições. Enquanto isso, os robôs estão decidindo o que deve ser visto pelo grande público.
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Antonio Brasil é jornalista e professor de jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina.