Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Do apartheid sulafricano ao racismo brasileiro

(Foto: Divulgação)

A primeira exibição, dentro de quatro semanas, do filme Todos os mortos, na principal competição do Festival Internacional de Cinema de Berlim, vai abrir um grande debate no grande país mestiço que é o Brasil. Um debate sobre a escravidão de negros importados da África, que durou cerca de trezentos anos, e deveria ter terminado com a abolição, mas se transformou num racismo disfarçado, praticado pelos próprios descendentes de escravos branqueados nas últimas gerações.
O mito de um Brasil sem preconceitos durou um século, mas acabou. A eleição de Bolsonaro, no contrassenso das conquistas sociais, vai se transformando num marco e assinala um retorno ao pensamento reacionário do passado, numa espécie de realismo racial brasileiro, no qual não por coincidência os pobres e miseráveis são os descendentes de negros e indígenas.
Existe uma certa semelhança no contraste vivido pelo Brasil e a África do Sul pré-Mandela – enquanto a África do Sul praticava a segregação e o racismo de maneira violenta contra os negros, que viviam na sua própria terra, a sociedade brasileira branca dominante optou por um racismo e estigmatização soft, reservando para os ex-escravos uma participação dentro da sociedade nas atividades básicas, sempre mal pagas e pouco acima do estatuto original vivido pelos escravos.
André Brink e outros autores sul-africanos brancos denunciavam o escravagismo, o apartheid e as violências cometidas contra os negros. No Brasil, ao contrário, sempre se procurou enfatizar o mito de uma sociedade multirracial e igualitária, sem se revelar que, nessa sociedade aparentemente ideal, os negros sabiam qual era seu lugar.
Com esse pano de fundo, os cineastas Caetano Gotardo e Marco Dutra construíram o filme Todos os mortos, mostrando duas famílias – a dos Soares, possuidora de escravos até a abolição e obrigada a se ajustar à nova situação, e a Nascimento, que procura achar seu lugar nessa nova sociedade, embora nada ajude nesse sentido.
Todos os mortos não é o primeiro filme sobre a escravidão feito por cineastas brasileiros, mas o fato de ter sua estreia em Berlim, no Festival Internacional de Cinema, provocará no Brasil um exercício de autoanálise nas nossas arcaicas estruturas sociais.
Cinema brasileiro resiste
O governo atual quer acabar com o cinema brasileiro, mas o Festival de Berlim selecionou para a competição um filme típico dos títulos engajados do Cinema Novo, da época da ditadura militar: Todos os mortos. O filme é uma denúncia de que a escravidão dos negros ainda não terminou no Brasil.
Carlo Chatrian, o novo diretor artístico do festival, fez uma referência especial ao anunciar, em Berlim, o filme brasileiro Todos os mortos entre os dezoito selecionados para a principal competição. O filme trata das consequências da escravidão no Brasil, tema que não se enquadra na temática cultural atual do governo brasileiro. Na verdade, nunca houve abolição: a escravidão continua.
Essa escolha assinala o retorno do cinema brasileiro à Berlinale, onde já foram premiados com o Urso de Ouro os filmes Central do Brasil, de Walter Salles, e Tropa de elite, de José Padilha. Ao mesmo tempo, a participação brasileira em 2020, em Berlim, fará lembrar os anos do cinema brasileiro durante a ditadura militar, mesmo porque a Ancine está em pleno desmonte pelo governo Bolsonaro.
O Festival de Berlim, também conhecido como Berlinale, começará dia 20 de fevereiro e terá a entrega dos seus Ursos de Ouro e Prata no dia 29.
Carlo Chatrian era, até o ano passado, o diretor do Festival de Locarno, na Suíça, onde tanto o cinema brasileiro quanto os de Portugal e dos países africanos de língua portuguesa sempre tiveram destaque.
Embora o ex-diretor do festival de Berlim, Dieter Kosslick, não tivesse adotado o mesmo procedimento do Festival de Cannes com relação aos filmes da Netflix, Carlo Chatrian deixou claro, em Berlim, que nenhum dos filmes selecionados para a competição foi produzido para ser visto pela internet, nos serviços de streaming, mas para a exibição nas salas de cinema. Em outras palavras, filmes da Netflix não foram considerados para a principal competição da Berlinale.
Outros filmes brasileiros em Berlim
Além de Todos os mortos, o Festival Internacional de Cinema de Berlim mostrará três filmes brasileiros selecionados para três mostras (Panorama, Geração e Forum Expanded): Cidade pássaro, Meu Nome é Bagdá e Apiyemiyeki?.
Em estreia mundial está o filme brasileiro Cidade pássaro. Pouco ainda se sabe sobre essa obra de Matias Mariani. O enredo resumido, divulgado pela Berlinale, diz que conta a viagem do músico nigeriano Amadi a São Paulo, em busca do seu irmão mais velho, Ikenna, do qual estava há muito tempo sem notícias. O filme tem ares de uma exploração enigmática em múltiplos níveis.
A mostra Geração, centrada principalmente nos jovens e em suas buscas, revela a brasileira Caru Alves de Souza com seu filme Meu Nome é Bagdá, que tem como foco o mundo das skatistas em São Paulo e o machismo com preconceito que ainda continua a dominar suas relações. Mas Bagdá e suas companheiras enfrentam o desafio.
Enfim, Apiyemiyeki?, da artista visual Ana Vaz, na mostra Forum Expanded, assume um tema capaz de desagradar o governo, ao que parece interessado em desmontar a cultura indígena. O tema é o povo Waimiri-Atroari, obrigado a deixar suas terras em 1970 para a construção da estrada que ligou Manaus a Boa Vista.
Kleber Mendonça no júri de Berlim
O cineasta brasileiro Kleber Mendonça fará parte do júri da principal competição do Festival Internacional de Berlim. Prêmio do Júri com o filme Bacurau, ano passado, no Festival de Cannes, Kleber é considerado um dos melhores cineastas brasileiros pela imprensa internacional. Seus outros filmes mais recentes são Aquarius e O som ao redor.
Berlim suprime o Prêmio Alfred Bauer
A direção do 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim decidiu suprimir o Prêmio Alfred Bauer, equivalente a um Urso de Prata. Alfred Bauer foi o primeiro diretor do festival e acabam de ser revelados documentos mostrando ter tido papel importante durante o regime nazista na Alemanha.
Relação dos filmes
Esta é a relação dos dezoito filmes (dezesseis estreias mundiais) selecionados para a principal competição do Festival Internacional de Cinema de Berlim, que completará setenta anos de existência.
Berlin Alexanderplatz (Alemanha/Holanda), por Burhan Qurbani
Com Welket Bungué, Jella Haase, Albrecht Schuch, Joachim Król, Annabelle Mandeng, Nils Verkooijen, Richard Fouofié Djimeli.
Estreia mundial.
DAU. Natasha (Alemanha/Ucrânia/Reino Unido/Rússia), por Ilya Khrzhanovskiy e Jekaterina Oertel
Com Natalia Berezhnaya, Olga Shkabarnya, Vladimir Azhippo, Alexei Blinov, Luc Bigé.
Estreia mundial.
Domangchin yeoja (The Woman Who Ran) (Coreia do Sul), por Hong Sangsoo
Com Kim Minhee, Seo Younghwa, Song Seonmi, Kim Saebyuk, Lee Eunmi, Kwon Haehyo, Shin Seokho, Ha Seongguk.
Estreia mundial.
Effacer l’historique (Delete History) (França/Bélgica), por Benoît Delépine e Gustave Kervern
Com Blanche Gardin, Denis Podalydès, Corinne Masiero.
Estreia mundial.
El prófugo (The Intruder) (Argentina/México), por Natalia Meta.
Com Érica Rivas, Nahuel Pérez Biscayart, Daniel Hendler, Cecilia Roth, Guillermo Arengo, Agustín Rittano, Mirta Busnelli.
Estreia mundial.
Favolacce (Bad Tales) (Itália/Suíça), por Damiano & Fabio D’Innocenzo
Com Elio Germano, Barbara Chichiarelli, Lino Musella, Gabriel Montesi, Max Malatesta.
Estreia mundial.
First Cow (EUA), por Kelly Reichardt
Com John Magaro, Orion Lee, Toby Jones, Scott Shepherd, Gary Farmer, Lily Gladstone.
Estreia internacional.
Irradiés (Irradiated) (França/Cambodja), por Rithy Panh.
Filme documentário.
Estreia mundial.
Le sel des larmes (The Salt of Tears) (França/Suíça), por Philippe Garrel
Com Logann Antuofermo, Oulaya Amamra, André Wilms, Louise Chevillotte, Souheila Yacoub.
Estreia mundial.
Never Rarely Sometimes Always (EUA), por Eliza Hittman
Com Sidney Flanigan, Talia Ryder, Théodore Pellerin, Ryan Eggold, Sharon Van Etten.
Estreia internacional.
Rizi (Days) (Taiwan), por Tsai Ming-Liang
Com Lee Kang-Sheng, Anong Houngheuangsy.
Estreia mundial.
The Roads Not Taken (Reino Unido), por Sally Potter
Com Javier Bardem, Elle Fanning, Salma Hayek, Laura Linney.
Estreia mundial.
Schwesterlein (My Little Sister) (Suíça), por Stéphanie Chuat, Véronique Reymond
Com Nina Hoss, Lars Eidinger, Marthe Keller, Jens Albinus, Thomas Ostermeier, Linne-Lu Lungershausen, Noah Tscharland, Isabelle Caillat, Moritz Gottwald, Urs Jucker.
Estreia mundial.
Sheytan vojud nadarad (There Is No Evil) (Alemanha/República Checa/Irã), por Mohammad Rasoulof
Estreia mundial.
Siberia (Itália/Alemanha/México), por Abel Ferrara
Com Willem Dafoe, Dounia Sichov, Simon McBurney, Cristina Chiriac.
Estreia mundial.
Todos os mortos (All the Dead Ones) (Brasil/França), por Caetano Gotardo e Marco Dutra
Com Mawusi Tulani, Clarissa Kiste, Carolina Bianchi, Thaia Perez, Alaíde Costa, Leonor Silveira, Agyei Augusto, Rogério Brito, Thomás Aquino, Andrea Marquee.
Estreia mundial.
Undine (Alemanha/França), por Christian Petzold
Com Paula Beer, Franz Rogowski, Maryam Zaree, Jacob Matschenz.
Estreia mundial.
Volevo nascondermi (Hidden Away) (Itália), por Giorgio Diritti
Com Elio Germano.
Estreia mundial.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. É criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.