Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Filme de Sokurov mostrou tiranos no purgatório

(Foto: ZERIG/ Pixabay)

Seria o purgatório, o Hades ou a sala de espera para o céu ou o inferno? Seja o que for, parecia uma gigantesca catedral, um palácio fechado ou uma masmorra subterrânea, na qual alguns mortos aguardam, deitados no caixão ou ainda na sepultura, abrir-se a porta para irem aos céus ou ao inferno.

Jesus Cristo, que muitos creem ter ressuscitado e subido aos céus, também ali está se queixando de muitas dores no corpo e pedindo para seu pai vir buscá-lo. Na porta, uma frase de Dante: “tu que aqui entras, abandone toda esperança”

Não muito longe, Stalin levanta-se do túmulo, reclamando das botas e das ceroulas apertadas, quase ao mesmo tempo em que saem de suas tumbas outros tantos mortos-vivos ou zumbis.

Alguns são fáceis de reconhecer como Hitler, Mussolini, Churchill. Outros vão sendo reconhecidos enquanto andam sem rumo, imaginando-se que já faz parte do inferno ficar dando voltas sem fim.

E nesses passeios de fantasmas e almas penadas, os antigos tiranos ditadores cruéis acabam se encontrando entre si e mesmo chegando a discutir e menosprezar alguns daqueles que os resistiram.

Hitler lamenta, por exemplo, não ter destruído Paris. Stalin não se arrepende de seus crimes, acha que quando se corta a grama se deve deixá-la bem rente ao chão. Hitler repete que sua guerra provou a inexistência de Deus. Churchill faz o V da vitória. De uma época bem anterior, também anda por ali Napoleão.

Para o cineasta russo Alexander Sokurov, foi importante vir apresentar seu novo filme em Locarno, pois foi lá que sua carreira cinematográfica começou. Tem dúvidas se seu filme “Skazka” (Conto) poderá ser exibido na Rússia. Conta ter discutido seriamente diversas vezes com Putin, mas afirma que não sairá da Rússia, por ter ali seu idioma e suas atividades de professor e cineasta.

O filme tem os rostos e os corpos das personagens das atuais cinematográficas de época, reconstituídos por imagens de síntese em preto e branco.

Frases de Alexander Sokurov no encontro com a imprensa

  • Eu fui criado e formado na cultura do velho mundo. Fui uma criança da cultura européia, criada sob a influência da história e filosofia europeias. A minha vida foi construída nisso.
  • Os americanos não se concentram nessas dores e nessas tragédias que vivemos, por isso é preciso falarmos e relembrarmos ainda mais esse passado. Devemos ouvir com mais atenção e compreender o que se passou para entender os problemas que originaram nossas aflições e assim transmitir o que sabemos para aqueles que estão longe além-mar.
  • É preciso se compreender que nestes anos aos quais se refere o filme, os valores humanísticos se perderam por muito tempo.
  • Agora chegou uma época em que os políticos têm uma tática, mas não uma estratégia. Eu repito sempre que os políticos devem colocar os valores humanos sobre todos os outros valores.
  • Meu filme está dentro do contexto da Divina Comédia. Na comédia de Dante, o que é diferente é que os personagens são punidos, mas na nossa história as personagens autoras de crimes não são punidas e não serão punidas. Os crimes cometidos por esses personagens, mesmo retrospectivamente, não foram punidos e nunca serão punidos mesmo se foram crimes hediondos e horríveis. Nessa tragédia incompreensível, talvez surja um novo Dante capaz de elaborar um novo sistema de poder entre os homens e ajudar a compreender.
  • Para mim essas imagens nos tocam e nos ajudam a interpretar porque e como aconteceram. Um dos fatores, por exemplo, foi a propaganda que detesto e odeio porque ela influencia o pensamento das pessoas.
  • A dor que sentimos é semelhante à dor fantasma dos que têm um membro amputado. E é essa dor fantasma que tem interessado aos grandes como Dickens, Marques, Soljenitzyn e os escritores russos.
  • No filme, o que interessa não é tanto a ideologia, mas a dramaturgia humana, seu caráter sofredor, que leva ao interesse pelo estudo dos caracteres humanos e não à tragédia da ideologia.  Queremos compreender como nascem e surgem esses caracteres e comportamentos humanos diabólicos. É sempre nos homens comuns que isso se manifesta, e não devemos esquecer que mesmo os grandes políticos não deixam de ser homens comuns.
  • Não existe fábula sem existência de vida e não existe vida sem fábula. A fábula com seu bom fim normalmente deve transmitir esperança. Todas as fábulas terminam bem e ao fim ao livro, retornando à realidade, ela nos dá a força de reagir, nos leva à realidade e a realidade nos dá a força de fazer alguma coisa contra o mal.

A influência evangélica e chinesa em Angola

A presença do cineasta Ery Claver, na competição da mostra Cineastas do Presente em Locarno, com o filme “Nossa Senhora da Loja do Chinês”, foi uma vitória cultural para seu país africano, Angola. Ele vem direto da população negra angolana.

Este ano, Angola esteve também representada na competição internacional por Carlos Conceição, de origem portuguesa, nascido em Angola quatro anos depois da independência. Binacional, fez seus estudos e vive em Lisboa. Seu filme “Nação Valente”, contra o colonialismo, já foi aqui comentado (Ver O Mundo aprisionado em suas ideologias – 9.8.22)

Para Ery, a realização do seu primeiro longa-metragem mostra o engajamento da juventude por uma mudança política no país.

Na entrevista que nos concedeu em Locarno, ele fala de sua formação, da influência crescente da China em Angola e do catolicismo sendo substituído pelos evangélicos.

 

  • Venho da parte de um coletivo, “Geração 80”. Venho pessoalmente de algumas curtas metragens mas começamos de fato a nossa carreira cinematográfica com longas-metragens como o filme “Ar  condicionado”, em que eu fui o roteirista e o diretor de fotografia.
  • O filme estreou bem, em Roterdam, na Holanda, teve alguma visibilidade, passámos por alguns festivais, mas não tivemos tanta oportunidade de divulgar o filme presencialmente. Porque apareceu, infelizmente, a pandemia do COVID o que nos obrigou a ficar em casa.
  • Nesse tempo, que estaríamos dando publicidade ao filme “Ar condicionado”, nós paramos e eu comecei a escrever o filme “Nossa Senhora da Loja do Chinês”.
  • Então foi uma premissa muito desafiante, feita pelo meu produtor Jorge Cohen, que nós teríamos que fazer o filme em 6 meses. Escrever e realizar o filme em 6 meses que foram os meus primeiros meses de 2020 na pandemia.
  • O processo de escrita do filme foi um pouco doloroso, mas também foi muito fácil porque eu juntei elementos dos curta-metragens que eu tinha feito previamente.
  • A ousadia principal foi quando decidi incorporar a narração chinesa no filme e criar esse elemento com a comunidade chinesa.

O título do filme “A Nossa Senhora da Loja do chinês” tem alguma conotação com uma influência muito grande que vocês estão tendo em Angola pelos chineses? No caso ele é o dono da loja, é o comerciante. Quando eu vi você fazendo esse filme com a língua cantonesa, eu imaginei, será que é um presságio do que poderá acontecer no futuro?

  • Muito boa pergunta. Obviamente, nós temos notado uma influência chinesa, não só na África, mas também em boa parte do mundo. Mas para nós, particularmente, tem sido com alguma estranheza e familiaridade ao mesmo tempo que temos acompanhado essa influência chinesa.
  • Porque eles estão lá como comerciantes e estão a desenvolver de forma muito forte os seus negócios, mas, ao mesmo tempo, distanciam-se um pouco. O que eles têm apresentado: a sua proposta comercial com elementos ocidentais, no caso da santa.
  • Eu escolhi um elemento que é ocidental que vem da colonização, pelo motivo religioso católico, que é bem reconhecido por nós.
  • Nós temos essa afinidade religiosa, mas eles não têm. Eles usam esse elemento no filme para conquistar, de alguma forma, o povo, porque é um elemento que nós conhecemos. Mas, ao mesmo tempo, eles banalizam, porque trata-se de uma massificação dessa figura religiosa, que é a santa, para um público ou para a população negra.
  • Então, nós temos um caso interessante: que é um produto asiático com características ocidentais, mas vendido para uma população negra.
  • Nós, como angolanos, ficamos sempre no caminho de identificação muito confuso. Nós nunca temos a nossa identidade intrínseca muito bem elaborada. Nós tanto estamos com a influência europeia, no caso portuguesa. Mas agora, que já não temos a colonização portuguesa, estamos a sofrer agora uma neocolonização comercial, que é muito mais branda, mas que também com elementos que não são nossos.
  • Então nós nos sentimos de alguma forma sempre apropriados na nossa própria situação social, no nosso próprio país.

Ali você vê a mulher com uma goteira na casa e vem uma outra e lhe diz que com uma reza vai acabar com a goteira. E ela manda embora os responsáveis, as pessoas que realmente o poderiam modificar. Então há essa influência religiosa. Porém no filme eu escutei também falar em evangélicos. Eles também tão chegando lá?

  • As igrejas evangélicas têm tomado o espaço das igrejas católicas e, se calhar, os chineses não se dão conta disso. Que a Igreja Católica já não os seduz muito, como proposta de salvação. Já não tem os elementos cativantes que outrora tinha. Então, a própria imagem da santa passa a ser uma imagem meramente comercial. Já não tem o mesmo efeito!
  • E que para nós é um pouco mais difícil, porque ainda tem um outro elemento que é nós associarmos às nossas superstições. Que isso já é base da nossa cultura, que nós temos o hábito de pensar que nada é por acaso. Se alguma coisa acontece, mesmo que seja um infortúnio técnico em casa, se o teto cai, é provindo de alguma força externa. O que nos obriga a procurar uma ajuda, também onírica, que se reflita com a mesma capacidade de intervenção que o problema exige.
  • Nós temos então a santa introduzida nesse meio de três formas. Tu tens a mãe que está a sofrer luto pela filha num trauma, num litígio com o próprio marido, e que, como conforto, acaba por ser levada a socorrer-se pela santa.
  • Mas ela não sabe muito bem se aquilo realmente irá resultar. É só porque é o último recurso que ela vê. Do outro lado tens um rapaz, que não tem nada a ver com um motivo religioso, mas que está à procura do cão. E o levam a acreditar que se calhar, na Loja do Chinês tenham sido responsáveis pelo desaparecimento do cão por uma outra superstição. Que nem é superstição: é que os chineses todos comem cães. Foi a probabilidade mais fácil para ele chegar lá e decidiu vingar-se da forma mais rápida e fácil e foi atingir esse símbolo que é a santa vendida pelo chinês.
  • E, temos, sim, o oportunismo do barbeiro que é o Mapele, que, este sim, acaba por aproveitar por motivos económicos a dor dos outros. E ele pega na santa do chinês e ele próprio decide fazer o seu próprio culto, e daí também lucrar um pouco. E nós ao mesmo tempo temos um prólogo, que faz um “breaking point” no filme.
  • No filme eles quase brincam de poder, num evento de fachada, onde o povo nem participa. O povo aparece lá como uma fotografia, uma moldura humana de forma fictícia através de roupas vazias. Que, ao mesmo tempo, é um símbolo, para mim, do descaso que eles têm com a própria população.
  • Isso tudo com o comerciante chinês observando de cima, porque ele é que nos introduz Luanda desta vez.

Nós vemos esse banquete, mas a influência do Partido Comunista ainda é grande? Como é que vai a democracia e a influência política chinesa e ao mesmo tempo essa comédia que foi esse banquete?

  • A situação política… para mim nós fizemos uma ficção, mas no filme é uma representação quase documental do que é a situação política.
  • Ela é feita de símbolos vazios, de discursos vagos, de representações vagas: com muitas palavras e não dizem nada. Com muita grandeza, mas não há grandeza nenhuma.
  • Então eu vejo também a Tourada, o próprio sítio onde nós ensinamos o banquete, como uma espécie de simbolismo de Luanda. Tens o lugar de grandeza, mas é inacabado. Um lugar que tentou ser alguma coisa! O que eu acho que foi a nossa proposta para o nosso país. Nós acabámos com o comunismo, e lançamo-nos para o mercado aberto. O mercado livre, com a promessa dum país rico, com muito petróleo e com a promessa de que talvez agora, sem as correntes do colonialismo, o país fosse, sim, se tornar para todos e com todos.
  • Mas, obviamente não é o que aconteceu: os governantes enriqueceram e o povo foi ficando para trás.
  • Mas as aparências não são o que significam. Da mesma forma que nós temos um comerciante chinês apelando pelo seu negócio, através de uma figura da santa. Eu vejo que quem se deslumbra mais pelo negócio do chinês são os próprios governantes no filme.
  • Porque há um certo conluio. Se calhar não está bem descrito no filme, ou está muito nas entrelinhas, que é a própria elaboração no início do filme, do evento que é financiado pelo chinês. É o próprio evento da tourada.
  • Ele é que promove aquilo. Então eles quase entregam o país para alguém. E são eles que festejam e se divertem. E não têm de se preocupar, nem com a situação religiosa e nem com a situação popular, e fazem parecer que está tudo bem, mas não está.

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Rui Martins, esteve, do 3 ao 13, no Festival Internacional de Cinema de Locarno, na Suíça.

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de LisboaCorreio do Brasil e RFI.