Em março de 1968, o repórter e escritor José Hamilton Ribeiro pisou na mina que lhe custou a parte inferior da perna. Trabalhava em uma reportagem sobre a guerra no Vietnã para a revista Realidade. Teve sorte.
Muitos fotógrafos que cobrem guerras ou conflitos armados arriscam a vida no trabalho. A jornalista e escritora Dorrit Harazim publicou um artigo a respeito, reproduzido na edição 701 deste Observatório da Imprensa em julho de 2012: “O fotógrafo que deu vida à morte” (edição 69 da revista piauí, de junho de 2012).
O fotógrafo de guerra mais famoso foi Robert Capa, como é sabido, cuja companheira Gerda Taro, também fotógrafa de guerra, morreu na Espanha em 1937, esmagada por um tanque – possivelmente por imprudência. Gerda era alemã, de Stuttgart; chamava-se Gerda Pohorylle; Robert, húngaro de Budapeste, nasceu Endre E. Friedmann. Gerda furou a dificuldade de vender as fotos de ambos ao criar os pseudônimos que lembravam o cineasta Frank Capra e a atriz Greta Garbo. E inventou que Capa era americano. Capa morreu na guerra da Indochina, em 1954, ao ter as pernas estraçalhadas. Mina.
Um filme sobre o assunto, o documentário Fotógrafo de guerra (Krigsfotografen, 2019, Dinamarca e Finlândia), foi exibido na 43ª Mostra Internacional de Cinema, de 17 a 30 de outubro de 2019, em São Paulo. Durante cinco anos, o dinamarquês Jan Grarup, 51 anos, fotógrafo, soldado, pai de quatro filhos, viúvo, fotografou o avanço das forças iraquianas contra o autoproclamado Estado Islâmico. O roteirista e diretor de cinema Boris Benjamin Bertram acompanhou-o e obteve, com sua câmera, os filmes que construíram o documentário.
Fotógrafo de guerra narra o drama de Grarup. Inesperadamente o trabalho de fotografar conflitos pelo mundo se modifica. Sua mulher ainda jovem, que cuidava da casa e dos quatro filhos, é diagnosticada com câncer terminal. O casal decide deixar todos os filhos conscientes do prognóstico. O pai cuidaria sozinho da família, sem deixar de ir às guerras. As crianças mais velhas ajudariam as menores. E manteriam a rotina. Grarup faria viagens frequentes para visitar a família e telefonaria com regularidade. Atenção e carinho, sem mimos.
Bertram estruturou o filme ao documentar as diversas vidas de Grarup. Filmadora na mão, seguiu o fotógrafo de um lado ao outro. Tiroteios e emboscadas da guerra no Iraque, intervalos de calmaria entre batalhas, poeira, explosões e carros-bomba. A rotina doméstica com os filhos nos períodos familiares ou nos contatos a longa distância em aviões, no hotel, em alojamentos na zona de conflito.
Multiplicam-se as cenas sem ação em que há cautela antes de correr para atravessar uma rua ou de aventurar-se por uma viela, virar a esquina. Não se percebe o frenesi hollywoodiano de metralhadoras atirando, soldados avançando, gritos, close de botas, gente caindo. Sente-se o calor local, o desespero do pai que tem o filho morto em uma explosão de carro. O documentário exige coragem, superação do medo, proximidade. “Se suas fotos não são boas o suficiente, é porque você ainda não está perto o suficiente” é citação atribuída a Robert Capa, em 1946, logo após a Segunda Guerra Mundial. Consta que Capa foi o único fotógrafo presente no famoso desembarque dos aliados na Normandia – o dia D, em 6 de junho de 1944.
Há, no entanto, uma sensação de estranhamento no final do filme Fotógrafo de guerra. A desventura da família sem a mãe e o cotidiano na Dinamarca, a carnificina e o sofrimento nos locais de conflito são reais. Mas, inexplicável num primeiro momento, enfraquecem o documentário e contagiam as fotos que informam sobre atos de barbárie das outras guerras que Grarup fotografou durante 25 ou trinta anos. Entre elas, a guerra do Golfo, o genocídio em Ruanda, o cerco de Sarajevo, as guerras da Somália, da Chechênia, o levante palestino contra Israel em 2000, o persistente conflito em Darfur, no Sudão.
O foco do fotógrafo parece ligeiramente perdido, embora tenha se aproximado corajosamente dos eventos. Talvez porque se desenvolvam duas histórias em um só documentário e ambas percam em densidade. As fotos ficam antes a sugerir um dever cumprido. Dramas familiares contidos. Muitos rolos de filme que, editados, precisam construir uma narrativa absorvente. Além do mais, sofrimento pode resvalar em sentimentalismo – Grarup deve ter sofrido demais para comover-se com facilidade.
Jean-Claude Bernardet, ensaísta, escritor e professor de cinema, analisou a questão do documentário no livro Caminhos de Kiarostami (Companhia das Letras, 2004), capítulo “Que câmeras são essas?”. Bernardet considera que a técnica de alteração de imagens e “o intenso processo de ficcionalização por que passa atualmente o cinema documentário” produzem a desconfiança pelo gênero. “A crise da representação é vivida com especial agudez pelo documentário. O que está em crise não é a imagem em si, é sua relação com a realidade”, escreve. Uma realidade exterior à imagem.
Segundo reportagem de Daniela Kresch na Folha de S.Paulo de 30 de dezembro último, o exército israelense acaba de criar uma unidade com a denominação “Fotógrafa de Guerra”. Por enquanto, são oito soldadas que devem fotografar ocorrências; espera-se que influenciem na moderação e impeçam cenas como as filmadas por Emad Burmat no documentário 5 câmeras quebradas, de 2012. O filme franco-palestino-israelense, dirigido pelo palestino Burmat e pelo israelense Guy Davidi, levou em 2013 os prêmios de melhor documentário no Festival de Sundance e no Emmy Internacional, além de ganhar uma indicação ao Oscar daquele ano (disponível no YouTube, de graça).
Honeyland, outro documentário exibido na 43ª Mostra de Cinema, foi filmado em 2019 nas elevadas montanhas da Macedônia do Norte, ex-Iugoslávia, de belíssimas paisagens. As cineastas Tamara Kotevska e Ljubomir Stefanov acompanharam por três anos a apicultora Hatidze Muratova, pobre, sensível, bondosa, que consegue sustentar a casa e sua mãe doente com o mel de excelente qualidade que extrai das colmeias. As cenas emocionantes transformam Hatidze, por seu humanismo e respeito pela natureza, numa nova espécie de abelha, reconhecida e aceita pelos enxames. Ela canta, conversa com os insetos. Sobretudo repete ao retirar favos e mel: “Metade para vocês, metade para mim”.
De etnia turca, as diretoras não compreendiam o idioma de Hatidze – também de etnia turca, mas de dialeto macedônio turco. Um tradutor auxiliou-as na edição das mais de 400 horas de filmagem obtidas de três a quatro vezes por semana. Nessas ocasiões, dormiam em barracas no terreno da casa rudimentar, de pedras, em que Hatidze e a mãe viviam.
Os cortes levaram à montagem de um filme de 87 minutos. O caráter ficcional se instala quando muda para o terreno vizinho um homem rude que cria gado e tem numerosa família. Ao descobrir o mel, enxerga a possibilidade de nova forma de ganhar dinheiro. O espectador capta o conflito de imediato – e aí está uma trama dramática. Difícil aceitar que não se trata de algo montado. No entanto, foi real, e não uma versão de docudrama para cinema.
Espectador algum suportaria horas de filmagem sem narrativa. Não há como atrair público e trazer a imprescindível bilheteria que torne factível o trabalho exaustivo de uma equipe.
Fotógrafo da guerra é um filme importante, 5 câmeras quebradas é um exemplo do que pode fazer um cidadão comum contra barbaridades e Honeyland é excepcional. Aceita-se, em geral, a afirmativa de que, quando se liga a câmera, perde-se a espontaneidade. Mas para que o filme cumpra a sua missão, algumas interferências consideradas necessárias pelo diretor são imprescindíveis.
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Judith Patarra é jornalista.