Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jornalismo sem glamour na telona

Já foram produzidos cerca de 200 filmes em que a atividade do jornalismo ou seus praticantes foram personagens principais ou importantes.

Poucos conseguiram retratar com tanta clareza, pertinência e senso de realidade o ethos (não necessariamente a ética) dessa profissão e a maneira de ser dos jornalistas como “Spotlight”, de Tom McCarthy, que estreou dia 8/1 aqui no Brasil.Spotlight cartaz

Em geral, o jornalista nas telas é, nos extremos, ou o super-herói Clark Kent ou o supervilão Charles Foster Kane.

O jornalismo no cinema ou é uma carreira de idealistas devotados a defender grandes valores ou de oportunistas que manipulam a consciência de massas indefesas para ganhar dinheiro e prestígio.

Em “Spotlight”, não. Neste filme, a realidade das redações é retratada como ela quase sempre é, habitada por pessoas que acertam, erram, duvidam, arriscam-se, trabalham com afinco, sob códigos de conduta raramente escritos ou formalizados, mas compartilhados por colegas ao redor do mundo ocidental.

O enredo é baseado numa história real e relativamente recente, embora qualquer jornalista que veja o filme vá achar que está vendo algo quase da sua pré-história, pois no início deste século, quando a ação se desenrola, a internet já existia, mas ainda estavam em seus estágios iniciais os efeitos que ela ocasionaria para a indústria da comunicação.

No jornal The Boston Globe (comprado pelo The New York Times em 1993), uma editoria de quatro repórteres se dedicava à prática do “jornalismo investigativo”, com liberdade e recursos para passar até um ano para preparar uma grande série de reportagens.

Em 2001, o novo editor-chefe, Marty Baron (atual diretor de redação do Washington Post), designou a equipe para investigar um caso noticiado numa coluna opinativa de abuso sexual de criança por um sacerdote católico.

O filme descreve o trabalho do grupo Spotlight para desvendar não só aquele caso, mas o de 70 padres que estupraram centenas de menores por dezenas de anos na cidade e foram acobertados pela cúpula da Igreja.

Foto Divulgação

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A história é contada de forma contida, sem nenhum sensacionalismo (nem no texto nem nas imagens), mas também sem nenhum eufemismo, e esta é uma das belezas maiores do trabalho, que consegue provocar emoção sem apelar para nenhum dos recursos corriqueiros do cinema com esse fim.

Baron, o secretário de redação Ben Bradlee Jr. (filho do lendário editor-chefe do Washington Post durante o caso Watergate) e os quatro integrantes do Spotlight, são pessoas que trabalham com afinco para fazer o seu trabalho, sem glamour, atos de grandeza moral, vilanias banais ou más intenções.

Quando Robby Robinbson, o líder da equipe investigativa, cobra de amigos advogados que defenderam padres pedófilos e mesmo de seus colegas de jornal, que tinham tido casos similares nas mãos no passado e os haviam enterrado, ele é obrigado a reconhecer que ele próprio, como editor de Cidades do jornal, havia deixado de dar sequência a denúncias desse tipo.

Como um dos advogados das vítimas argumenta, todo o establishment da cidade de Boston, majoritariamente católica, havia ajudado a ocultar por décadas os episódios de pedofilia por padres ocorridos ali.

Assim como Baron havia orientado os jornalistas para se concentrar na instituição (a Igreja), não nos indivíduos (os sacerdotes), o filme também dá ênfase às práticas e processos do jornalismo, não aos repórteres.

Os dramas pessoais dos jornalistas (com cônjuges ou parentes) são periféricos. O foco está no trabalho, e um trabalho muito diferente do atual, que envolvia pesquisa em arquivos de recortes, livros e catálogos impressos, ir de casa em casa de entrevistados para levar muitas vezes com a porta na cara.

A discrição do roteiro e da direção é compartilhada pela sutileza da interpretação de um elenco perfeito (Michael Keaton, Lieve Schreiber, Rachel McAdams, John Slattery, Brian d’Arcy James e Stanley Tucci) e da textura da fotografia (de Masanobu Takayanagi).

Foto Divulgação

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O diretor Tom McCarthy e seu co-roteirista, Josh Singer, tiveram de fazer eles próprios, por dois anos, um trabalho jornalístico para recriar toda a história, que não havia sido contada ainda por nenhum dos seus protagonistas.

Eles, assim como os atores, entrevistaram os jornalistas e funcionários do Globe para reconstruir os fatos e os locais em que eles se desenrolaram, e isso pode tê-los ajudado a compreender tão bem o que foi feito ali.

O resultado é bom cinema e excelente material para reflexão sobre o que é o jornalismo com suas contradições, misérias e glórias. Ou pelo menos o que era há 15 anos, antes da revolução digital se tornar tão dominante.

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Carlos Eduardo Lins da Silva é jornalista e ex-presidente do PROJOR.