Dieter Kosslick (2001-2019), ex-diretor da Berlinale, dizia: “O cinema nos mostra o que acontece no mundo”. Essa premissa vale especialmente para o maior evento cultural da Alemanha e o mais político dos festivais de cinema.
A história não perdoa, nem mesmo quando a ocasião pedia festa: o festival se viu confrontado com sua própria história e extinguiu o prêmio Alfred Bauer depois que foi descoberto que o fundador era figura de alto escalão no aparato nazista de sistemática opressão e manipulação da sétima arte, plano meticulosamente alinhavado por Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Hitler e fanático pelos filmes de Hollywood.
Pela idade avançada, pelo engodo e ranço históricos que, durante décadas, repousaram oportunamente debaixo do tapete, a Berlinale precisará se reajustar num contexto histórico, reinventar-se para sobreviver ao convulsivo zeitgeist e aprender a gostar de um cara tímido e arredio como o italiano Carlo Chatrian.
Ironia cinematográfica
Berlim desenrolou o tapete vermelho para o cinema brasileiro que ainda colhe os frutos de uma política pública acertada nos governos de FHC, Lula e Dilma Rousseff, mas que hoje está estrangulado, amarrado e com quase sessenta projetos parados, como mencionou o cineasta Kléber Mendonça Filho na coletiva do júri internacional.
Em Berlim, o cinema brasileiro esteve representado por dezenove filmes espalhados por todas as mostras, mas a resistência já havia se manifestado com a equipe de Marighella, em 2019. Em 2020, o cerco se fechou ainda mais.
Sara Silveira, a mais obcecada e teimosa escoteira do cinema brasileiro e fundadora da Dezenove Som e Imagens (SP), aproveitando a visibilidade da coletiva de imprensa do filme Todos os mortos, dos diretores Caetano Gotardo e Marco Dutra, fez um manifesto: “Nós somos totalmente tolhidos, freados por um governo que não entende (talvez porque lhe falte inteligência) que nós proporcionamos empregos e proporcionamos ideias, diversidade, sobretudo resistência. Enquanto eu existir, como mulher (tenho 69 anos de idade), eles vão ter que ouvir e ver os meus filmes, porque estarei lutando sempre mostrando para eles. É difícil nos calar, com a força que a gente tem. Eu vou dizer uma coisa para o Brasil e para o mundo: eu não preciso de armas, eu preciso de força, de apoio, coragem e momentos heroicos para suportar o que nós estamos vivendo. Nos aguardem, nós vamos resistir, nós vamos vencer, nós, todas as raças, todos os gêneros, todos nós estamos aqui gritando por liberdade, democracia, contra a censura e…resistência!” Veja, aqui, Sara Silveira falando à autora deste texto.
No último dia do festival – que, por vários motivos, irá entrar para a história por uma avalanche de ambiguidades, atropelos e muitos acertos nas escolhas dos filmes -, os berlinenses invadiram o cinema. Tirando aspectos sazonais e pueris, o festival, sob novo comando artístico, só começou alinhavar as questões do futuro que já está logo ali. O caminho da Berlinale será longo, para se reencontrar. Já o caminho do cinema brasileiro é incerto, sombrio.
No sábado (29), antes da premiação, encontrei no setor de imprensa a jornalista Flavia Guerra, repórter do Canal Brasil. A ideia espontânea de entrevistá-la para o site Cenas de Cinema resultou em uma análise certeira. Flavia, que chegou a Berlim vinda do Festival de Sundance, onde fez cobertura primorosa focada em filmes com mulheres à frente e por trás das câmeras, arrematou em poucos minutos a robusta e diversa presença do cinema brasileiro, algo que ela batizou de “Brasinale”.
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Fátima Lacerda é carioca, radicada em Berlim desde 1988 e testemunha ocular da queda do Muro de Berlim. Formada em Letras (RJ), tem curso básico de Ciências Políticas pela Universidade Livre de Berlim e diploma de Gestora Cultural e de Mídia da Universidade Hanns Eisler, Berlim. Atua como jornalista freelancer para a imprensa brasileira e como curadora de filmes.