Sob a aura “noir” da fotografia em preto e branco e os ambientes de penumbra rajados de luz, em filetes, Mank, o filme dirigido por David Fincher e distribuído pela Netflix, enfoca o roteirista Herman J. Mankiewicz (1897-1953), autor do roteiro original do clássico Cidadão Kane, obra-prima de Orson Welles, de 1941.
Fincher faz também uma homenagem póstuma a outro roteirista, Jack Fincher, seu pai. O roteiro de Mank estava pronto desde o final da década de 1990, mas só ganhou vida em 2020. Jack Fincher faleceu em 2003.
É possível dar-se por satisfeito com a explicação superficial de que Mank é sobre Hollywood — uma crítica ao sistema dos estúdios e à época dourada do cinema. A impressão não está errada, mas é apenas cortina que encobre algo mais importante e subliminar. Há um mistério de bastidor que dá sentido à história, um detalhe ululante, uma espécie de…”rosebud!“, em Mank.
Quem assistiu a Cidadão Kane guardou para sempre um ponto de interrogação: o que afinal o filme quis dizer com “rosebud”? A palavra, que literalmente significa botão de rosa, atravessa a trama como um “to be or not to be” shakespeareano.
Sempre se cogitou que o enigma seria peça-chave de um quebra-cabeças de Kane que não podia ser contado, apenas proferido. Mank cita uma das versões sobre o que Mankiewicz, de fato, queria dizer com “rosebud“. O ator Gary Oldman, que encarna o roteirista, empresta uma gargalhada a um das fofocas sobre a palavra, já mergulhada em intriga.
Há algo mais por trás de Mank que o torna uma história menos banal e linear do que parece. Insistentemente ouvimos salpicar um nome: “Upton Sinclair!“, repete o filme, várias vezes. Upton Sinclair é o “rosebud” de Mank.
Upton Beall Sinclair Jr. (1878-1968), famoso escritor de romances de denúncia social que reverberaram na imprensa, causando grande impacto na opinião pública dos Estados Unidos, foi alguém que transitava entre a literatura e o jornalismo, até ser tragado pela política. As resenhas de hoje o resumem como uma espécie de Bernie Sanders da época da Grande Depressão.
Socialista, Sinclair concorreu pelo Partido Democrata da Califórnia na disputa pelo governo daquele estado, em 1934. Em meio à grave crise que arrastou os mais pobres ao fundo do poço, Sinclair resumiu sua campanha no slogan “Acabar com a pobreza na Califórnia” (“End Poverty in California” – EPIC). Seu programa foi escrito, na forma de livro, como uma utopia. O título: Eu, Governador da Califórnia, e como acabei com a pobreza: uma história verdadeira do futuro.
Mankiewicz foi um antifacista e incomodou os nazistas o quanto pôde, a ponto de o então ministro da Educação e Propaganda da Alemanha nazista, Joseph Goebbels, ter avisado ao estúdio Metro-Goldwin-Meyer (MGM) que seu governo não compraria produções do estúdio assinadas por Mankiewicz — assim revelou o obituário de Mankiewicz, publicado no New York Times em 1953.
Todavia, na política dos Estados Unidos, ao que se sabe, o roteirista não era exatamente um militante do Partido Democrata e nem um cabo eleitoral de Sinclair, pelo menos não a ponto de se justificar a insistência do filme. Por que, então, tamanha insistência do roteiro com as eleições para governador em 1934? Qual a relação entre Mankiewicz e a campanha ardilosa do grande capital para transformar alguém que lutava por moradia, emprego e alimentação em um monstro radical que supostamente ameaçava o futuro da Califórnia?
A chave explicativa está em que Mank contextualiza Hollywood como algo mais que a Meca do cinema. A relação que o filme alinhava entre cinema, imprensa, dinheiro e política está simbolizada na amizade, nas festas, jantares e conluios entre o chefão da MGM, Louis B. Mayer; o grande magnata da imprensa, William Randolph Hearst — que inspirou Cidadão Kane —; e a campanha republicana de 1934. Mank é sobre como operava a glamourização da promiscuidade entre as maquinarias do capital, da alienação e do poder.
Antes de Cidadão Kane, o trabalho mais importante de Mankiewicz havia sido O Mágico de Oz, de 1939 — um fracasso de bilheteria que por pouco não caiu no esquecimento, até ser relançado em 1949.
Fora esse e alguns outros filmes, sua ocupação principal na MGM era a de refazer outros roteiros para que fossem à tela; normalmente, sem levar o devido crédito. Com Kane, ele iria à forra e se consagraria para sempre.
Com olhos desavisados, o filme pode parecer contar a história de uma vingança de um roteirista contra o sistema dos estúdios. É aí que entra…Upton Sinclair. Ele funciona como metáfora e nos permite entender que Mank é uma história de Dom Quixote. A começar do próprio roteirista, mas também de tantos outros personagens do filme — Orson Welles, Marion Davies, Shelly Metcalf (personagem fictício), os trabalhadores desempregados à porta do estúdio — são todos Quixotes, Dulcineias e Sanchos Pança.
De certa forma, até o Mágico de Oz era alguém que fabricava ilusões e tonitroava ameaças escondido atrás de uma maquinaria que precisaria ser desvendada por figuras das mais quixotescas, para o bem da história.
Mank é um conto sobre cavaleiros, damas e escudeiros em batalhas contra moinhos gigantes. Batalhas aparentemente perdidas, não fosse o fato de que, eternamente lembradas, mostram que ainda serão travadas inúmeras vezes, enquanto houver Quixotes, Dulcineias e Sanchos dispostos a enxergar algo além das fábricas de ilusões.
***
Antonio Lassance é doutor em ciência política pelo Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, pós-graduado em comunicação organizacional pela Universidade de São Paulo, foi chefe de Gabinete da Secretaria de Comunicação e Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2003-2005) e presidente do Conselho de Administração da Empresa Brasileira de Comunicação (Radiobrás, de 2004 a 2007), atualmente Empresa Brasil de Comunicação (EBC).