Quem precisa ver de perto para entender o que acontece quando um país invade outro, está aí o festival É Tudo Verdade com “Freedom on Fire” ( “Liberdade em Chamas”). É o documentário a partir da Primavera Ucraniana com jovens na praça de Kiev entre 2013 e 2014 exigindo maior integração europeia e a resposta de Putin para aquela ousadia, a guerra de quase uma década. Complementando “Winter on Fire,” indicado ao Oscar em 2015, o documentário de Evgeny Afineevsky é narrado por Helen Mirren e não deixa dúvidas de que os ucranianos nunca deixarão de lutar contra a invasão russa. Outro ucraniano, Sergei Loznitsa , coloca a questão do uso da população civil como meio de guerra.
É moralmente aceitável?, questiona Loznitsa em “A História Natural da Destruição”, inspirado no livro de W.G. Sebald e baseado em imagens da Segunda Guerra. “Front do Leste”, de Vitaly Mansky e Yevhen Titarenko ainda conta a história de jovens voluntários no batalhão de primeiros socorros no front ucraniano – há drama, desespero, medo, ódio, amargura e amor, mas nunca se perde a fé na vitória. Este é apenas um exemplo do Festival que chega em sua 28ª edição sobrevivendo ao desfalque cultural bolsonariano por honra e mérito do diretor-fundador Amir Labaki. Acontece entre 13 e 23 de abril em São Paulo, na Cinemateca Brasileira, Sesc 24 de maio, Cine Marquise no Conjunto Nacional, o Centro Cultural São Paulo e o Instituto Moreira Salles. E no Rio de Janeiro, nas estações NET Botafogo e Estação NET Rio.
São 72 títulos de 39 países. Em São Paulo, a abertura dia 12 na Cinemateca mostra o filme americano “Subject”, direção de Jennifer Tiexjera e Camilla Hall, sobre a ética no documentário e como os documentaristas tratam seus personagens. O Rio, dia 13, exibe “Um Ano de Vida de Eduardo Escorel”, com fatos de 1968 baseado em um carta de Silvia Escorel para seu irmão mais velho, escrita há 54 anos.
Os documentários internacionais tratam da evolução de uma família iraniana desde a Revolução Islâmica em 1979 até agora em “Casa Silenciosa”, de Farnaz e Mohammad Reza Jourabchian; a autocrítica do poeta Heberto Padilla preso em Cuba em 1971, “O Caso Padilla”, de Pavel Giroud; a luta dos chineses contra o abuso de poder estatal na vigilância digital em “Confiança Total” , de Zialing Zhang; a história de uma sobrevivente do genocídio armênio em “Despertar da Aurora”, de Inna Sahakyan; a história do mais jovem físico do Projeto Manhattan que para impedir o monopólio americano sobre a bomba nuclear passa informações para a União Soviética em “Um Espião Compassivo”, de Steve James.
Também Little Richard, fotogramas inéditos do cinegrafista do presidente iugoslavo Tito, a competição Internacional Chopin de Piano em Varsóvia, a infiltração de evangélicos na máquina política americana, o mal de Parkinson de um estrela de Hollywood.
Jean-Luc Godard, um dos cineastas mais importantes do século XX, morto no ano passado, ganha homenagem especial, primeiro com “Godard Cinema”, de Cyril Leuthy, depois com os oito episódios de sua monumental “Histoire (s) du Cinéma”, 1980 e 1990. “Há 15 anos, “A(s) História(s) do Cinema” não era visto por aqui”, diz Labaki, “uma leitura poética sobre sua arte, uma das maiores do século XX, por um cineasta que figura na mesma galeria de Proust, Picasso, Erik Satie”.
Os sete longas brasileiros em competição trazem documentários sobre os presos identificados como “171”, de Rodrigo Siqueira; o registro a partir de sua gravidez e a conversa com mulheres obre vida, luto, políticas públicas em “Incompatível com a Vida” de Elisa Capai; P.C. Farias, o tesoureiro do ex-presidente Color de Mello em “Morcego Negro”, de Chaim Litewski e Cleisson Vidal; a busca pelo seu pai que lutou contra a ditadura militar na década de 1970, “Nada Sobre Meu Pai”, de Susanna Lira; o meio-ambiente no documentário “Santino”, de Cao Guimarães; as vidas de três crianças de realidades diferentes em Belo Horizonte entre 2002 e 2022 em “Amanhã”, de Marcos Pimentel; as travessias, hoje perigosas pelas ameaças do narco-garimpo, de personagens transitando entre suas aldeias e a cidade indígena de São Gabriel da Cachoeira, em “O Contato”, de Vicente Ferraz.
A homenagem brasileira é um desejo finalmente realizado de Labaki ao cineasta pioneiro que completa 40 anos de morte quase esquecido, Humberto Mauro. São dois filmes, “Mauro, Humberto”, de David Neves, de 1975, e “Humberto Mauro, Cinema é Cachoeira”, de Andre di Mauro, sobrinho-neto do realizador, de 1918. Além de dez curtas de Humberto Mauro, de 3 a 20 minutos cada.
Há competição de curtas brasileiros e internacionais. Nas mostras não competitivas onde, entre os brasileiros, estão as incursões criativas do fazedor de teatro Antunes Filho, do “Coração para o Olho”, de Cristiano Burlan, e entre os internacionais “Merkel”, durante alguns anos a mais poderosa líder européia, de Eva Weber. E os clássicos do É Tudo Verdade.
O documentário ganhou espaço, É Tudo Verdade veio junto tendo exibido no ano passado o vencedor do Oscar na categoria, “Navalny”, sobre o principal opositor do presidente russo candidato às eleições de 2024 que foi envenenado, detido e transferido a uma prisão desconhecida.
É para não perder o Festival.
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Norma Couri é jornalista.