A mídia tem sugerido saídas para aliviar o buraco negro que engoliu a maioria dos brasileiros este ano, provocado até pelas próprias notícias veiculadas. A melancolia cobre o mundo e ficou exposta na Bienal de Veneza, que retratou o planeta corroído, caótico e saturado de angústias. Neste fim de semana, foi a vez de Sergio Augusto, no Estadão, explodir: “Que fase! Nem as efemérides da semana contribuíram para aliviar a urucubaca governamental”. Mas José Eduardo Agualusa sugeriu, há dois sábados n’O Globo, vencer o desânimo com música, muita música, e a leitura de A cidade e as serras, de Eça de Queiroz. O espetacular show do carioca Guinga no violão, acompanhado da flauta e do sax de Teco Cardoso e da voz de Mônica Salmaso no Blue Note paulista é sempre uma pedida. Ou a última peça que Antunes Filho dirigiu já no hospital, antes de morrer a 2 de maio deste ano, Eu estava em minha casa e esperava que a chuva chegasse, no Sesc Consolação até novembro.
Mas, para quem frequenta a Pauliceia, nada supera a imprescindível Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, na 43ª edição, que começa nesta quinta (17) e vai até o final de outubro cobrindo a maioria das salas da cidade. A própria Mostra superou o golpe quando sofreu cortes na carne. A Petrobras, patrocinadora da Mostra há dezenove anos, não entrou nesta edição. Quase não aconteceu. A diretora Renata de Almeida conseguiu chegar ao orçamento de R$ 4,5 milhões, R$ 500 mil menor do que no ano passado, quando o ideal seriam R$ 6 milhões. Mas surge espetacular como sempre. São 304 produções de 45 países.
Abre para convidados no Auditório do Ibirapuera, dia 16, com a adaptação para as telas do livro de Fernando Morais Os últimos soldados da guerra fria, com o título Wasp Network, de Olivier Assayas (recebe o prêmio Leon Cakoff), com Gael García Bernal, Penélope Cruz, Wagner Moura e Edgar Ramirez no elenco. É a história de cinco prisioneiros políticos cubanos encarcerados nos Estados Unidos desde a década de 1990, acusados de espionagem e assassinato. O festival termina com o novo longa de Fernando Meirelles, Dois papas, com Anthony Hopkins e Jonathan Pryce como dois pontífices discutindo os tão atuais rumos da Igreja Católica.
No meio, não percam esse raro olhar oferecido sobre o mundo com Parasita, da Coreia do Sul, direção de Bong Joon-ho, retratando com maestria a desigualdade social que nós conhecemos tão bem, e que levou a Palma de Ouro no Festival de Cannes. Parasita passa na Mostra ao lado da produção de países que já resolveram todos os problemas sociais e econômicos que nos afligem. Como os escandinavos, que nos surpreendem com o norueguês Cavalos roubados, de Hans Petter Moland, sobre amargas reminiscências da infância que conduzem à velhice solitária, Urso de Prata no quesito contribuição artística no Festival de Berlim. Ou França, com O último amor de Casanova, de Benoît Jacquot, que disseca as origens do desejo, da rejeição, do amor. E a Alemanha, com System crasher, de Nora Fingscheidt, e o instigante Mente perversa, de Savas Ceviz, sobre a pedofilia – o diretor virá para a Mostra.
Dois belos documentários: da Macedônia do Norte, Honeyland, de Ljubomir Stefanov, e da Argentina, A boia. O primeiro, Grande Prêmio do Júri no Festival de Sundance, sobre a tolerância e a ganância, relata a destruição do meio ambiente e da natureza usando o fio condutor da cuidadora de uma colônia de abelhas numa vila isolada. O segundo, dirigido e estrelado por Fernando Spiner, é um delicado relato de vida e de prestação de contas com um daqueles personagens que estendem a mão para os principiantes, neste caso na poesia e na literatura, tudo em conversa com Aníbal, com quem pratica os rituais do nado, culinária, pesca, amizade e poesia. O filme argentino mais visto este ano no país e indicado para concorrer a uma vaga ao Oscar também estará em cartaz, A odisséia dos tontos, de Sebastián Borensztein, com Ricardo e Chino Darín no elenco.
Não é de hoje que o cinema iraniano surpreende, aqui com dois belos filmes, Sem túmulo, de Mostafa Sayari, que ressuscita velhos segredos, ódios e tormentas familiares durante o enterro do pai e concorreu ao prêmio Horizons de melhor filme no Festival de Veneza, e Teerã, cidade do amor, com o humor ácido sobre três personagens desencantados, um campeão de fisiculturismo que é homossexual enrustido num país repressor, a obesa secretária de uma clínica de beleza e o cantor que ora alegra casamentos, ora engata cantos fúnebres nos enterros de contemporâneos, exibido no Festival de Roterdã.
As produções da Sérvia não circulam muito por aqui, mas Cicatrizes, de Miroslav Terzic, é uma bela experiência sobre roubo de bebês que, o diretor explica, é abundante naquele país, sem solução oficial. É possível voltar à vida depois da morte? Na fábula holandesa Afterlife, de Willem Bosch, sim. E também refazer tudo aquilo que fizemos de errado na vida. E por que não Viver para cantar, como nos ensina a China, em coprodução com a França, na direção de Johnny Ma sobre uma pequena trupe de ópera de Sichuan retratando a tão conhecida luta para manter espaços teatrais destruídos em nome da modernidade. Viver para cantar foi indicado ao prêmio da Quinzena dos Diretores do Festival de Cannes.
Outros presentes na Mostra foram indicados para Cannes: o argelino Papicha, de Mounia Meddour, o dominicano The projectionist, de José Maria Cabral, o equatoriano La mala noche, de Gabriela Calvache, o tcheco O pássaro pintado, de Václav Marhoul, o australiano Empucho, de Rodd Rathjen.
O ganhador do Urso de Ouro no Festival de Berlim, Sinônimos, estará na Mostra junto com a Concha de Ouro no Festival de San Sebastian, Pacificado. O palestino Elia Suleiman, que estrela o próprio filme em uma saga sobre o exílio, que não deixa de ser cômica, compõe a seleção da Mostra com O paraíso deve ser aqui.
O Auditório do Ibirapuera exibe O Farol, premiado no último Festival de Cannes, com Robert Pattinson e Willem Dafoe – presente no festival -, seguido da masterclass do diretor Robert Eggers (A bruxa). E no dia 2 de novembro acontecerá no palco externo a clássica sessão acompanhada, desta vez, pela Orquestra Jazz Sinfônica, de O gabinete do Dr. Caligari, que completa cem anos, de Robert Wiene. A programação do vão livre do Masp incluirá uma sessão de curtas de Georges Méliès, além de filmes e documentários.
Homenagens ao diretor israelense Amos Gitaï (distinguido com o prêmio Leon Cakoff) com um livro das cartas de sua mãe, à diretora alemã Mariette Rissenbeek, nova diretora executiva da Berlinale, e a Luiz Rosemberg Filho, morto este ano. Há uma vasta programação de filmes em realidade virtual (VR), sessões temáticas sobre o meio ambiente, sessenta filmes brasileiros, entre eles quatro longas exibidos no Theatro Municipal: A vida invisível, de Karim Aïnouz, selecionado para representar o Brasil no Festival de Cannes, Abe, de Fernando Grostein Andrade, que participou do Festival de Cannes, Três Verões, de Sandra Kogut, e a última homenagem de Bárbara Paz ao cineasta Hector Babenco (1946-2016), com quem foi casada, Babenco – Alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou.
Como disse o secretário municipal de Cultura de São Paulo, Alê Youssef, “este país é muito mais modernista do que bandeirante – quanto pior o mundo, melhor o nosso carnaval”. E o patrocinador Danilo Miranda, diretor do Sesc, reafirma a Mostra como sinal de resistência cultural “diante do obscurantismo que nos ameaça”. A diretora Renata de Almeida resiste – e nós, junto com ela.
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Norma Couri é jornalista.