Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Sombras do passado e um desleixo histórico

(Foto: Divulgação Berlinale)

“Evidentemente a mente é como um baú
O homem é quem decide
O que nele guardar
Mas a razão prevalece
Impõe seus limites
E ele se permite esquecer de lembrar
Esquecer de lembrar”
(Olho de Peixe/Lenine)

Nas duas últimas semanas, a velha democracia sofreu vários terremotos na Alemanha. Um deles se deu em 29 de janeiro, no dia da coletiva oficial da edição do Festival de Berlim de 2020 (o evento acontece de 20 de fevereiro a 1º de março). Foi veiculado na imprensa, como resultado de uma pesquisa do jornal Die Zeit, que Alfred Bauer (1911-1986), criador e diretor do festival no período de 1951 a 1976, era um nazista ambicioso com cargo de confiança no aparato cinematográfico entre 1942 e 1945, setor meticulosamente criado por Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Hitler durante o nacional-socialismo (1933-1945). Os documentos do Arquivo Federal (Bundesarchiv) e Arquivo da Cidade de Berlim (Landsarchiv) revelaram que Bauer era über-fiel a Goebbels e tinha controle de quem atuaria frente às câmeras e quem deveria lutar e deixar sua vida no front.

Depois da capitulação, em 1945 – assim informa o artigo veiculado no portal Spiegel Online no dia 29 de janeiro -, Bauer teria tentado apagar todos os rastros de sua ligação com o sistema, negando filiação a associações nacionais-socialistas, como a organização alemã criada pelo Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP, na sigla) para estudantes universitários adeptos do sistema. No contexto da capitulação, Bauer teria mentido compulsivamente sobre seu real papel durante a ditadura.

O choque na opinião pública e na área cinematográfica teve desdobramentos em sentimentos de raiva, impotência, consternação e especial desconforto para os premiados. Um gosto amargo ao vislumbrar o Urso de Prata em alguma estante ou mesa de escritório e seu ranço ideológico que, agora, resume-se à lembrança de um passado mal resolvido e de um desleixo histórico.

Os resquícios, as manchas e as sequelas do tempo do nacional-socialismo de Hitler se mostram frequentemente no espaço urbano – por exemplo, quando bombas daquela época são descobertas em algum canteiro de obras e moradores precisam ser evacuados de seus prédios e bairros até que a bomba seja colocada em segurança. As sombras do período mais criminoso e bárbaro da história alemã voltam à tona para esfregar na cara de muitos que faltou algo na avaliação e digestão desse período.

Defuntos no porão

Por que somente o jornal Die Zeit teve a ideia de pesquisar o material sobre Bauer disponível a historiadores e jornalistas nas estantes do Arquivo Federal e no da cidade de Berlim? Por que o próprio festival, já há setenta anos na estrada, não foi atrás da sua história, não foi investigar um período sem meios-termos em tempos de intransponível antagonismo ideológico?

Alfred Bauer, que polia sua imagem ao lado das estrelas, era um pau-mandado de Goebbels e, como revela seu “atestado de grau de doutrinação”, um “nazista fervoroso”. Ninguém viu, ninguém pesquisou, ninguém quis saber. O ritual de vista grossa é seguido sempre numa mistura entre fervor e subserviência quando sob regimes antidemocratas, ditatoriais. O trançar de alianças diabólicas é um ritual lógico e natural.

O nome de Alfred Bauer, antes motivo de selo de qualidade, agora é uma lama podre que cola na reputação do festival que é o mais político e o mais esquerdista da Europa. Ainda ao longo do dia 29/01, a direção da Berlinale decidiu extinguir o prêmio em nome de Bauer que condecorava “novas perspectivas da Sétima Arte”.

A extinção do prêmio não apaga a biografia do fundador do festival que, em nota no site do evento e em sua página no Facebook no mesmo dia da veiculação da matéria, assegurou a investigação do passado de Alfred Bauer e acrescentou “aproveitar essa oportunidade para iniciar uma pesquisa aprofundada sobre a história do festival, com o apoio de especialistas externos”.

Cidade-escombro

A Berlinale surgiu em 1951, numa cidade que ainda exibia escombros. Prestes a completar 70 anos, precisa fazer todo o caminho de volta para entender melhor e de forma mais honesta sua própria história, intrínseca com a da cidade que foi o centro logístico do nacional-socialismo.

Que os fantasmas do passado estejam e que ainda permaneçam por muito tempo pelos quatro cantos da cidade de Berlim é uma consequência natural. Porém, o desleixo histórico da diretoria do festival – surgido para que a capital não amargurasse mais tempo no isolamento internacional depois da capitulação e para ser o cartão-postal de uma “outra Alemanha” – precisará de um reload, o máximo factível simbolizado por uma reinterpretação de sua própria história. Um reset seria pedir muito.

Não há porque duvidar da honestidade do festival, mesmo porque as fontes jornalísticas gozam de muita credibilidade no país e já derrubaram inúmeros governos, mas será uma procura tardia. A história não perdoa.

O italiano Carlo Chatrian, diretor artístico, e a holandesa Mariette Riessenbeeck, CEO, terão um caminho difícil pela frente, já que acabam de tomar o comando do maior evento cultural da Alemanha. A pressão de entregar o serviço e de fazer uma faxina na história do festival, além da discussão que decerto virá à baila durante os dez dias do evento, é mais um desafio para a dobradinha que mal começou.

Links:

– “Berlinale extingue o Prêmio Alfred Bauer”, informa a manchete do portal Spiegel Online em 29 de janeiro, poucas horas depois da coletiva de imprensa anual que exibe a programação.

– “Berlinale extingue o Prêmio Alfred Bauer depois de críticas referentes ao período do nacional-socialismo”, anuncia a emissora de TV local de Berlim, RBB.

– O prêmio homônimo do primeiro diretor da Berlinale não será mais entregue. Como o Zeit veiculou, documentos provam o seu passado nacional-socialista.

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Fátima Lacerda é carioca, radicada em Berlim desde 1988 e testemunha ocular da queda do Muro de Berlim. Formada em Letras (RJ), tem curso básico de Ciências Políticas pela Universidade Livre de Berlim e diploma de Gestora Cultural e de Mídia da Universidade Hanns Eisler, Berlim. Atua como jornalista freelancer para a imprensa brasileira e como curadora de filmes.