Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Um apelo afetuoso por um despertar – sobre o filme Ainda estou aqui

(Foto: Luis Quintero/Pexel)

Ainda estou aqui é um filme avassalador. Ele é construído de tal modo que nenhum espectador consegue assisti-lo sem ser capturado por ele. É, ao mesmo tempo, fascinante e inquietante, como a fulguração magnética de uma grande chama. Tal poder de dominação sobre quem o contempla parece indicar a presença de uma atemporalidade, de uma sensação de que ele se passa no Rio da década de 1970, mas que poderia ser em uma Londres da psicodelia de 1960 ou uma Roma felliniana, enfim, de uma história universal. Mas essa é uma impressão equivocada. Sua força não advém de um vazio tal que poderia ser preenchido por qualquer projeção humana.

A história de Eunice Paiva é tributária de um espaço-tempo preciso: da ditadura militar brasileira de 1964, dos abusos injustificáveis permitidos pelo AI-5, do desprezo pelo humano e da perversão que assolou o Estado brasileiro, de uma história e de um acontecimento que tem uma origem e um desenvolvimento muito preciso: de um Rio de Janeiro nostálgico de si, de uma burguesia zona sul pré-empreendedora, da família brasileira produzida pelo encontro de um passado escravagista com os ventos revolucionários de uma era de aquários. Esse filme é, antes de tudo e a despeito das possíveis intenções que o motivaram, uma ode a uma pequena aldeia perdida, perdida antes mesmo de ter se perdido.

É um filme para os brasileiros; para, ao vê-lo, nos vermos. Nenhum Bertolucci ou Godard poderia tê-lo feito. Foi preciso o agenciamento de certas características imprecisas, como a melancolia decadente de um humanismo europeu e a alienação de uma felicidade restrita a uma elite tipicamente carioca, para que essa obra existisse. E, por isso mesmo, estranhamente, Ainda estou aqui não deixa uma só pessoa escapar de sua atração.

Apesar de ser uma obra política, social e ética, nenhuma dessas características se coloca como finalidade do drama real. Não é política na forma de um Memórias do cárcere, nem possui uma descrição social como em um Cidade de Deus, ou mesmo se alinha a um debate ético produzido, por exemplo, por um Tropa de elite. Sua força está na afetividade. E assim o é porque, plasticamente, a história é de uma mulher, e não de um homem. Rubens Paiva, enquanto arquétipo, é tão necessário no filme quanto periférico. Sua necessidade é fruto da sociedade em que vivemos: machista, séria e irresponsável. Sem os homens brasileiros que construíram esse país, não seria possível traçar uma tragédia brasileira. Mas sua disposição dramatúrgica é periférica, na medida que o filme conta a trajetória de uma mulher que, perdendo seu esposo, morto sob tortura, em pleno estado de exceção, se forma em direito, atua na defesa dos índios e, assim, mantém sua família, para alcançar, depois de 25 anos, o reconhecimento público da morte de seu marido pelo Estado, vivido por um Selton Mello que, por isso, atua mais nos silêncios que nos diálogos.

Ainda estou aqui é uma rara possibilidade de olharmos para nós mesmo com uma insólita sensação de familiaridade e de estranheza, como aquele que se sente, em sua própria história, como um íntimo de si e estrangeiro a tudo. É a força que só a margem de um rio pode produzir na navegação de um barco. Eunice é o epicentro deslocado que nos permite ter uma perspectiva ausente da realidade, um olhar tanto estarrecido pelo ocorrido quanto íntegro pelo porvir, personificado pela interpretação final de Fernanda Montenegro.

Mas o desejo constante e tão compartilhado de emoção que alcança o espectador do filme não é, de modo algum, oriundo de uma raiz melodramática. Walter Salles é terrivelmente austero na montagem do filme. Como João Cabral de Melo Neto em sua poesia, mantém uma rígida postura de rejeitar tudo aquilo que poderia se mostrar piegas ou catártico na história. Sua disciplina é, inclusive, incorporada por Fernanda Torres, em sua interpretação milimetricamente naturalista. Ela está inteiramente a serviço de uma causa. Ao rejeitar o excesso, ao escapar do carnavalesco, ao desafiar um caminho apoteótico, ainda que trágico, o filme exibe sua face resplandecente: a afetividade. É a história de uma família, de pessoas comuns, de uma história como outra qualquer. Filhos, casa, vizinhança, amizade, trabalho, preocupação com o outro, orçamento doméstico, gosto musical, uma dinâmica familiar comum e que, como em toda família, devastada, como não poderia deixar de ser, pela situação histórica presente, pela condição social que a cerca, pelas relações éticas vigentes em sua cultura.

Talvez essa seja a dimensão planetária comportada pelo filme: aquela que nos constrange a admitir que não há individualidade sem o coletivo, de que não há abundância sem o partilho, de que não há amor sem a diferença. Eunice Paiva é uma mulher e sua história se apresenta como uma outra forma de nos descobrirmos em nossa própria história: sem escusas, sem vitimismos e sem, sobretudo, mentiras. Um apelo afetuoso por um despertar.

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Marcelo S. Norberto é escritor e professor de Filosofia.