O Festival Internacional de Cinema de Berlim marcou mais uma vez sua força ao escolher um documentário, “No Adamant”, para receber o Urso de Ouro. O filme trata de um tipo de tratamento de distúrbios psiquiátricos, distúrbios que afetam um grande número de pessoas, tratamento aplicado de maneira quase espontânea. O filme foi feito sem qualquer intenção de ensinar qual a terapia aplicada, num local sui generis: no espaço contido dentro de um barco amarrado em um cais do rio Sena.
Mas não foi só isso: a questão do gênero e da transidentidade mereceu diversos filmes e, pelo menos, dois prêmios. A menina espanhola Sofia Otero, de apenas oito anos, ganhou o Urso de melhor interpretação, no filme no filme “20.000 Espécies de Abelhas”, da realizadora Estíbaliz Urresola. Ela viveu a personagem de uma criança, considerada menino ao nascer, mas que se sente e quer ser menina.
A atriz transexual austríaca Thea Ehre recebeu também o prêmio de interpretação por seu papel no filme “Till The End of The Night”. Houve também o ator Sean Penn num documentário na Ucrânia, o cantor Bono e o realizador Steven Spielberg, premiado com um Urso de Honra.
Porém, o principal jornal de Berlim, o Der Spiegel, deu manchete no final da Berlinale, mostrando insatisfação: “Balanço da Berlinale: as estrelas estavam lá, o público veio, mas a maior vitrine da 73ª Berlinale foi frustrantemente triste: a competição pelo Urso de Ouro. O maior festival de cinema alemão precisa repensar suas prioridades”.
É verdade, houve muito romantismo de mau gosto e o filme francês familiar “Le Grande Chariot”, de Philippe Garrel, era ruim, mesmo se seu diretor foi premiado. Embora os cinemas estivessem cheios, é normal se perguntar se os festivais de cinema continuarão a ter o mesmo impacto. No Brasil, diversos grandes jornais não cobriram a Berlinale ou simplesmente publicaram os despachos de agências. Porém, é bom destacar que nenhum prêmio foi para os filmes românticos tipo fotonovela!
O Urso de Ouro do Festival Internacional de Cinema de Berlim foi para um documentário filmado num barco atracado à margem do rio Sena, em Paris, onde funciona, durante o dia, uma clínica psiquiátrica para pacientes com um passado de distúrbios mentais. O nome do barco é Adamant, e o título do filme é sutil: sugere o que se passa ou se faz flutando sobre o rio – “No Adamant”.
Ninguém dorme nesse barco. Os pacientes chegam pela manhã e definem com os orientadores qual será a atividade de cada um durante o dia, seja musical, teatral, de pintura, expressão corporal ou outra coisa. Tudo num clima de liberdade, tendo em vista um possível retorno à vida dentro da sociedade.
Esse barco, cuja manutenção funciona com apoio da prefeitura parisiense, mostra uma outra forma de tratamento desvinculado de clínicas psiquiátricas privadas. Mas o filme não se preocupa com esse aspecto e nem discute seus métodos, quer apenas mostrar, deixando ao público as conclusões.
Com a exibição do filme programada perto do final do Festival, alguns críticos devem ter subestimado sua importância por ser um documentário sobre problemas mentais. A sala não estava tão cheia como nas primeiras projeções. Mas se enganaram: o tema era importante e seu diretor, o francês Nicolas Philibert, já havia feito, há vinte anos um outro filme emblemático, “O Ser e o Saber”.
Um Urso de Prata para as donas de um hotel
O filme dirigido pelo português João Canijo, “Mal Viver”, conta o clima tenso no convívio entre as cinco mulheres, mãe e filhas, que dirigem um hotel perto da praia portuguesa de Ofir. O filme se complementa com outro filme de discussões e ofensas entres hóspedes no mesmo hotel, e tem por título “Viver Mal”, numa mostra paralela, mostrando as insuportáveis relações entre casais e a maléfica influência materna.
Um prêmio de marionete
Ninguém entendeu o prêmio de melhor diretor para o francês Philippe Garrel, dirigindo o filme “Le Grand Charriot” um teatro de marionetes com suas filhas. O filme não constava de nenhuma das previsões de prêmios feitas por críticos, por ser um dos piores exibidos no Festival. Roteiro fraco e mal interpretado, foi uma má surpresa ter seu diretor premiado.
Houve um prêmio para um curta-metragem brasileiro: o curta-metragem Infantaria, de Laís Santos Araújo, ganhou como o melhor filme da mostra paralela Generation14Plus.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro sujo da corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A rebelião romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.