O Festival Internacional de Cinema de Berlim é um desfile de novas experiências cinematográficas onde a diversidade de enfoques é o ponto forte. A maratona de filmes termina no sábado quando serão anunciados os vencedores da mostra competitiva, que receberão o Urso de Ouro e o do Prata.
A seguir uma seleção de alguns filmes exibidos até o dia 16/2:
O estranho filme do italiano Gianfranco Rosi
Ninguém se esquece que Gianfranco Rosi ganhou o Leão de Ouro de Veneza, há três anos, com “Sacro Gra”, o primeiro documentário a ganhar esse prêmio. Mas seu filme na competição internacional do Festival de Berlim soa estranho.
Filmado em Lampedusa, cidade italiana que se tornou conhecida por ali chegarem milhares de imigrantes africanos, em barcos vindos da Líbia, “Fuocoammare” parece conter dois documentários : um principal mostrando a tragédia humana dessa imigração e outro com o menino Samuel fabricando ou usando seu estilingue ou num barco, mais um anônimo pescador mergulhador.
O problema para quem vê “Fuocoammare” é a sensação, senão a certeza, de haver uma heterogeneidade entre os imigrantes, o menino e o pescador de Lampedusa. Rosi, diante das perguntas de críticos um tanto surpresos, não se sentiu constrangido e explicou ter usado o menino Samuel e o mergulhador para mostrar como prosseguia a rotina normal na cidade de Lampedusa. A explicação pode ser bene trovata, mas não convence, mesmo porque tanto Samuel como o mergulhador não têm sequer um único ponto de contato com os imigrantes.
Um outro fator trabalhou contra o filme de Gianfranco Rosi, foi a atualidade. Enquanto Rosi montava seu filme com migrantes, na maioria jovens da África subsaariana, em busca de uma vida melhor na Europa, tragédias ainda maiores começaram a ser cotidianas, no trajeto das costas turcas para as costas gregas, de famílias inteiras afogadas no naufrágio de precários barcos pneumáticos. Mulheres, homens e crianças fugindo da guerra na Síria e de outras regiões instáveis do Oriente Médio, em busca de refúgio na Europa.
O filme alemão “24 horas” defende o direito da mulher decidir o aborto
O filme “24 Semanas” , dirigido por uma jovem cineasta da antiga Alemanha comunista (RDA) , Anne Zohra Berrached, terá sua distribuição comercial restrita, admitiu seu produtor no encontro com a crítica. O tema, o aborto, é tabu em numerosos países por questões religiosas, cristãs e muçulmanas, agravado por tratar de um aborto por questões médicas além dos prazos limites, na verdade quase perto do parto.
É a história de Astrid, uma atriz, espécie de one woman show, na Alemanha, mãe de um filho de nove anos, que trabalha junto com o marido produtor. Tudo começa com a alegria do casal diante da gravidez, mas nos exames de ecografia ficam sabendo que o bebê é portador do síndrome de down, trisonomia 21 ou mongolismo. O choque parece reunir o casal que, depois de muito refletir se considera capaz de assumir esse nascimento.
Mas a situação se agrava quando, em outra ecografia, se constata uma anomalia no coração – o bebê tão logo nasça deverá passar por uma série de operações, dolorosas para o bebê e com resultados não garantidos. Depois de visitar uma maternidade, onde bebês prematuros e deficientes estão nas incubadoras, Astrid fica em dúvida quanto à sua responsabilidade de deixar nascer um bebê condenado a uma existência anormal e limitada.
Também reflete se o casal e seu filho de nove anos poderão suportar sem sequelas essa situação, além das consequências no trabalho, pois esse filho exigirá, durante toda sua vida, cuidados constantes e dedicação plena. Primeiro sinal negativo, a babysitter do filho de nove anos se demite ao saber do próximo nascimento do bebê excepcional.
Na maioria dos países europeus existem dois tipos de abortos, o que se pode fazer por decisão voluntária da mãe até as 12 semanas e o aborto por questões médicas, chamado de interrupção médica da gravidez, sem um limite definido mas sujeito à comprovação dos problemas de formação do feto.
A indecisão de Astrid provoca crise no casal, pois o marido julga serem capazes de enfrentar juntos esse desafio. Astrid, finalmente, é mais realista e opta pelo aborto do feto já formado e quase pronto para o parto. Neste caso, o aborto exige a interrupção da vida do feto por uma injeção que atravessa a placenta e se aplica na cabeça, causando morte instantânea. A seguir, a mãe tem um parto induzido.
Coincidentemente, o filme é bastante atual para a situação vivida por muitas mães grávidas brasileiras portadoras de bebês com microcefalia em gravidez avançada. Na Alemanha, 98 % das mães decidem abortar quando se constata qualquer anomalia ou deficiência no feto.
Para a realizadora Anne Zohra Berrached, o tratamento da questão do aborto é mais realista, pois foi criada na antiga Alemanha oriental, onde o governo marxista, desvinculado de religiões tinha legalizado e garantido o aborto em qualquer situação, se a mãe assim desejasse. O mesmo não acontece na Polônia, país vizinho, onde a proibição do aborto foi reintroduzida por pressão da Igreja católica. No Brasil, além dos católicos e evangélicos, também os espíritas condenam o aborto.
Mahana, a surpresa neozelandesa
Depois de quatro filmes médios e um ruim, apareceu um que ganhou elogios. “Mahana”, dirigido por Lee Tamahori, cineasta nascido em Wellington e com carreira em Hollywood. Por isso, alguns poderão catalogar seu filme como hollywoodiano, para explicar a fotografia e as tomadas perfeitas, as belas cenas da paisagem bucólica neozelandesa. Seja como for, “Mahana” marcou sua presença e se destacou dos demais. Ainda é cedo para se falar em premios, mas já é um sério concorrente, a um Urso.
Além disso, seu tema, a reconciliação, se enquadra perfeitamente no espírito do Festival este ano, numa Alemanha invadida por refugiados. O diretor do Festival se pronunciou contra as guerras provocadoras de migrações e a presidente do júri, Meryl Streep, tinha falado em reconciliação.
“Mahana” contra a rivalidade existente entre duas famílias mahori, os Mahana, dirigidos por um patriarca autoritário, prepotente, que não suporta ser contraditado, e os Poatas. Os mahori são os nativos da Nova Zelância e os últimos povos a serem colonizados. Talvez, por isso, escaparam de serem dizimados como ocorreu nas Américas. A rivalidade entre as duas famílias é marcante nos concursos de tosquia de lá, pois são fazendeiros criadores de carneiros-
O autoritário chefe de clã, ao qual todos devem obediência, não contava certamente com a rebelião com seu neto Simeon, que se mostrou capaz de enfrentá-lo à mesa diante de toda família. Sentindo-se insultado, o avô agride o neto, provocando a reação do pai, seu filho, tudo terminando na expulsão dessa parte da família.
Além de suas imagens mostrarem algo novo, “Mahana” revela excelentes atores desconhecidos neozelandeses e anuncia uma consequência positiva da globalização : o enriquecimento internacional de artistas com o surgimento de interpretes fora do padrão fixado por Hollywood, como Temuera Morrison, o patriarca, e Akuata Keefe, seu neto contestador.
E houve ainda uma surpresa na entrevista coletiva dos atores e realizador do filme “Mahana”, quando foi feita uma demonstração do grito de guerra, mas também de significação religiosa, Haka, uma dança própria do povo mahori.
Spike Lee denuncia a violência nos EUA
“Chi-Raq”, o novo filme de Spike Lee é uma peça de teatro com lances de comédia musical rap, simplesmente espetacular, que denuncia a violência diária nos Estados Unidos, envolvendo tanto negros como brancos.
Em Chicago Midwest morre tanta gente vítima de violência quanto num país em guerra, daí ter sido utilizada a contração das palavras Chicago e Iraque no título do filme, ou seja, “Chi-Raq”.
É uma adaptação de uma peça teatral grega de Aristófones, Lisístrata, escrita na época da guerra do Peloponeso envolvendo espartanos e troianos, enfraquecendo o país diante da ameaça de invasão persa. Na peça, Lisístrata, que seria hoje uma líder feminista, consegue convencer as mulheres a lançarem uma greve de sexo, se os homens não puserem um fim à guerra.
No filme, Lisístrata, bela negra de cabelos tipo Angela Davis, mobiliza a população feminina do Midwest Chicago, depois do assassinato de uma jovem, quando as mulheres declaram a greve do sexo, em defesa da vida de seus filhos ou de seus irmãos. A manifestação e batizada de No peace, no pussy, que numa tradução livre, daria mais ou menos – Sem paz não há ttransa.
A situação se torna insustentável porque as mulheres se vestem de maneira ainda mais provocante, com suas coxas, seios e bundas quase nus, provocando desespero e mesmo crises de nervos na população masculina carente de sexo. E o filme mostra a greve de sexo se alastrando pelo mundo, até com feministas de São Paulo com cartazes na linguagem da periferia, prometendo não haver mais atos sexuais se continuar a violência.
É um filme para não se deixar de ver quando passar no Brasil. Logo depois da projeção de “Chi-Raq”, Spide Lee foi se encontrar com a imprensa e denunciou a insuportável violência nos Estados Unidos. Seguem alguns trechos selecionados da entrevista:
« Só no mês de janeiro deste ano, foram assassinadas 53 pessoas nos EUA num aumento de mais de 80 % sobre o ano passado. Já morreram neste ano 90 pessoas e, só nesta semana, 17 foram mortas a tiros.
– “A juventude atual parece insensível à violência, que está por tudo, nos jogos vídeos, na televisão, na música, a violência é glorificada e se faz na mídia a apologia da violência de uma maneira atroz, de tal forma que, em Chicago, se tem a impressão de um retorno à selvageria”.
“Quando há troca de tiros se contam os disparos como se fosse um jogo vídeo, dando a impressão de que para tais pessoas a vida não tem nenhum valor. Seja por tendência social ou por falta de melhor educação, isso é muito triste. A referência dos jovens se tornou a dos jogos vídeo. Os EUA se tornaram um país extremamente violento e as estatísticas de mortes dão a impressão de haver combates nas cidades”.
“E se Donald Trump for eleito presidente dos EUA ? Bom, por enquanto ele é apenas candidato a candidato. Certos estados americanos se utilizam da violência, considerando-a legítima quando isso lhes convém. Uma das razões dessa violência é o dinheiro e a ganância dentro da sociedade americana. E essa violência ocorre também entre os brancos, crianças de origem mexicanas são envenenadas por produtos tóxicos. E é sempre assim, entre a vida humana e o dinheiro, é sempre o dinheiro quem ganha nos EUA. No setor público, a privatização faz com que as estruturas sejam deixadas ao abandono”.
“Eu e minha mulher decidimos não ir à cerimônia dos Oscars, não se trata de convocarmos um boicote, simplesmente nós não iremos. Cada ano, na categoria de atores, há 20 indicações para o Oscar. Nos últimos dois anos, não houve nenhuma indicação de atores negros. Como se pode chamar isso ? Nos esportes, ocorre o inverso, há muitos negros. E tudo ia ser feito em silêncio, se eu e outros não tivéssemos protestado”.
“Mas não apelei ao boicote, simplesmente não iremos. Veja bem, aqui em Berlim, são sete jurados, mas no Oscar são 1500 jurados, sobre os quais são exercidas pressões e lobbying. E como se passam as coisas, são dois meses de filmagens e depois o resto do ano são prêmios e promoções do filme. Portanto, não vamos exagerar também a importância do Oscar, é uma tradição do passado. O problema no Oscar são os seus guardiães ou responsáveis. Esse pessoal de alto nível, produtores nos estúdios, nas redes de televisão e do mundo do cinema, se reúne a cada três meses e decide o que vamos ver, e depois enviam seus representantes ao júri. Falta diversidade própria do cinema. Foi o que eu disse ao receber o Oscar honorário”.
“As estatísticas dizem que em 2026 os americanos brancos serão minoria. Ora, mesmo se não acreditam na diversidade, sei que acreditam na força sacrossanta do dinheiro e do dólar, mas se não levarem em conta essa mudança de maioria demográfica será catastrófico porque existe um mercado enorme a se levar em consideração”.
“Depois do 11 de setembro a violência se espalhou pelo mundo e eu não votarei naqueles que utilizam a violência com o objetivo de salvar a economia. Se for para votar num democrata contra Trump, eu votarei democrata, com preferência para Bernie que vem do Brooklin. Outra coisa, o presidente viaja sempre com uma maleta onde está o código secreto no caso de guerra nuclear. Imaginem se Donald Trump tem acesso a essa maleta. Isso dá medo”.
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Rui Martins está em Berlim cobrindo o Festival Internacional de Cinema.