Conhecer uma fábrica indiana com seus operários numa cidade perto da capital é o que nos permite o filme do cineasta Mahesh Narayanan com seu filme Declaração (Ariyippu). Ele é da província do Kerala, de onde são também os protagonistas de seu filme. Seu longa-metragem, exibido em Locarno, na competição internacional, faz parte da progressão de sua carreira, que começou como montador de filmes, cenarista, chefe operador de equipe de filmagem e produtor. Outros filmes de Mahesh já foram exibidos nos festivais de Moscou, Roterdã e Shanghai.
O tema bastante atual se desenvolve em plena época do Covid com a necessidade da proteção das pessoas para evitar contaminação. O local: uma fábrica onde se fabricam luvas cirúrgicas. O trabalho é mecânico, repetitivo, cabendo a parte mais simples, a da verificação da qualidade das luvas, às mulheres.
A Índia é um país diverso, no qual se falam numerosos idiomas, entre os quais o hindu e o inglês. Kerala é uma província costeira, vivendo da agricultura, de densa população pobre, razão pela qual muitos emigram para países vizinhos e outros para a capital do país, Nova Delhi.
O filme conta a história de um casal de emigrantes (poderíamos dizer retirantes, como os nossos nordestinos pobres dos anos 50/60), numa fábrica nada moderna, mas na qual os operários têm seu celular. Esse contraste favorece o surgimento de conflitos baseados em busca de sexo online e que acabam degenerando em pressão patronal sobre o casal operário, com a convivência das autoridades policiais locais.
Paralelamente, a desconfiança se instaura no casal, a incapacidade do marido agressivo e dominante em aceitar os argumentos da esposa leva à violência. Reshmi, o nome da esposa, assume no filme a figura capaz de surpreender e denunciar o arranjo encontrado pela fábrica para abafar o abuso cometido com a existência de um antigo vídeo que voltará a circular, mostrando uma felação praticada no trabalho por uma operária, cuja semelhança facial com Reshmi exigia o prosseguimento do inquérito policial para se saber quem eram responsáveis pelo vídeo. E em que condições a operária foi filmada.
Polsky pensava ter Hitler como vizinho
Esse filme, exibido em Locarno na Piazza Grande, Meu Vizinho Adolfo, tinha começado a ser filmado no sul do Brasil, contou seu diretor Leon Prudovsky., antes de ser transferido para a Colômbia. O filme é uma coprodução israelense-polonesa-colombiana, mas pelo que ficou no ar, poderia ter sido co-produção com o Brasil.
Depois de algum tempo, Marek Polsky, um polonês sobrevivente do Holocausto, solitário, vivendo em 1960 na Colombia, uma pessoa solitária e mal humorada, se convenceu de ter Adolf Hitler como seu vizinho. Observando-o de sua janela, havia notado diversas semelhanças com o nazista responsável pela destruição de sua família – tinha olhos azuis, gostava de arte, pintava naturezas mortas com a mão esquerda e tinha o mesmo jeito de andar.
Diante disso, não havia dúvidas, era preciso denunciá-lo. Foi às autoridades policiais locais e contou essa estranha coincidência. Mas Hitler já morreu, se suicidou no fim da guerra, lhe disseram. E acharam não haver provas para se abrir um inquérito.
Essa ideia fixa de Polsky teria sido motivada talvez pela prisão, nesse mesmo ano de 1960, pelo Mossad, de um dos principais articuladores da chamada Solução Final ou extermínio dos judeus aplicada pelos SS nazistas. Adolf Eichmann também vivia na Argentina, com um nome falso.
Talvez a embaixada israelense pudesse ajudá-lo, pensou Polsky, mas logo se decepcionou. Essa história não colava. Enfim, para se verem livres da obsessão de Polsky, sugeriram que tentasse obter provas e não se deixasse levar apenas por suas impressões.
Ao invés de colocar um fim nessas desconfianças. Polsky comprou todos os apetrechos e um aparelho fotográfico que permitissem espiar pela janela. Algumas circunstâncias ajudaram Polsky a se aproximar do vizinho, inicialmente com muita relutância, porém o jogo de xadrez, no qual Polsky já ganhou medalhas no passado, serviu de principal elemento de aproximação entre os dois.
E o filme explora uma fábula hassídica, a de alguém que começa a ver a humanidade no seu pior inimigo e acaba por se tornar seu amigo. O diretor israelense do filme, Leon Prodovsky, convidou para viverem essa estranha relação dois grandes atores – o escocês David Hayman e o alemão Udo Kier.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.