Wednesday, 13 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Um filme sobre os riscos do jornalismo investigativo

Quando “”Spotlight”” despontou no Festival de Toronto, em setembro do ano passado, não estava sozinho ao filmar o trabalho de uma equipe de jornalismo de investigação. Além do filme de Thomas McCarthy, consagrado com o Oscar, participava do Festival, outro filme sobre jornalistas, “Truth, o preço da verdade”, de James Vanderbilt.

Enquanto “Spotlight” podia ter contra si o enfraquecido lobby católico, por mostrar os jornalistas do Globe de Boston empenhados em levantar e tornar público o escândalo dos padres pedófilos, “Truth” tinha contra si a poderosa televisão CBS.

Isso por ter transposto para a tela o livro da ex-editora-chefe do programa 60 Minutos, Mary Mapes, contando como foi demitida, depois de ter lançado no ar a denúncia de que, o então candidato à reeleição, George W. Bush utilizou de suas importantes relações familiares para escapar à Guerra do Vietnã e mesmo às suas obrigações militares como piloto transferido para a Guarda Nacional, que corresponde à reserva militar.

Cena do filme The Truth com Robert Redford - Credito Divulgação

Cena do filme The Truth com Robert Redford – Credito Divulgação

Os dois filmes permitiram aos seus espectadores terem a impressão de verem ao vivo duas equipes de jornalistas em plena ação – uma de um jornal impresso local, tratando da questão do abuso sexual e enfrentando o peso da igreja católica, interessada em abafar a questão; a outra tratando diretamente de uma denúncia contra o presidente americano em exercício, candidato à reeleição, por ter se subtraído a Guerra do Vietnã. A diferença surge no final, pois os resultados obtidos pelas duas equipes de investigação foram opostos.

Os jornalistas do Boston chegaram ao objetivo, conseguiram seu happy end e desmascararam os clérigos envolvidos na pedofilia dentro da Igreja. Ao contrário, a equipe comandada pela  jornalista Mary Mapes, premiada alguns meses antes por ter revelado as torturas cometidas na prisão de Abu Ghraib pelos americanos, foi acusada de ter utilizado documentos falsos ou de não ter investigado devidamente a veracidade das provas. O veterano apresentador Dan Rather, com 25 anos de CBS, sentiu-se obrigado a fazer mea culpa, apresentar suas desculpas, para logo depois se demitir. A seguir, houve um um processo interno na CBS, e toda equipe foi demitida. Dan Rather tentou processar a CBS mas sem sucesso junto à Justiça.

O filme “Spotlight” já foi bastante comentado. Vamos nos fixar em “Truth”. O filme não teve a mesma recepção no Brasil de “Spotlight” e, provavelmente, seu título em português Conspiração e Poder influiu nisso por não ter despertado muita curiosidade.

O dedo da CBS, contrária ao filme e que o boicotou, não pode ser omitido na campanha de lançamento de “Truth” nos EUA e no Brasil, inclusive na fase de indicação de filmes para o Oscar. Apesar de ter Cate Blanchett e Robert Redford nos papéis principais, o filme acabou ficando na sombra de “Spotlight”. Justa ou injustamente? Difícil julgar, pois os filmes, embora utilizando o mesmo tema de jornalistas em investigação, são muito diferentes. “Truth” tinha contra si ser um filme indesejável não só para a CBS como para os republicanos, mas bem acolhido pela crítica europeia talvez por estar longe dessas influências.

Depois de ler uma série de comentários postados por espectadores franceses num portal de cinema, percebe-se que para muitos deles, mais superficiais na crítica, os jornalistas mostrados em “Truth” não foram severos na autenticação da fonte dos documentos utilizados, o que teria causado a demissão do grupo. Para esses espectadores, ficou só a mensagem da necessidade do rigor jornalístico na apuração da notícia. Acostumados a digerir o transmitido ou impresso pela mídia não vão além, confiam nesses veículos como fiáveis na seleção do noticiário.

Cartaz do filme The Truth - Crédito Divulgação

Cartaz do filme The Truth – Crédito Divulgação

Onde teria havido a falha na equipe do programa “60 Minutos”, da rede americana CBS, na reportagem lançada ao ar e acusada de não dispor de provas suficientes? Logo depois de premiada pelo seu furo jornalístico mostrando pela CBS as primeiras fotos de Abu Ghraib, no Iraque, com prisioneiros torturados por soldados e oficiais americanos, a jornalista Mary Mapes quis tirar a limpo os rumores de que o presidente George W. Bush, candidato à reeleição, utilizara influências políticas, quando jovem, para não ir lutar no Vietnã. Faltavam alguns meses para as eleições e tal revelação poderia mudar o resultado da votação, embora o opositor de Bush, o democrata John Kerry fosse acusado de não ter sido tão herói como afirmara, na Guerra do Vietnã.

Para obter tais informações seriam necessários depoimentos de oficiais sob aos quais servira W. Bush. Mas esta era uma missão impossível, pois vários deles já tinham morrido e outros se negavam a qualquer contato. Foi quando surgiu o tenente-coronel Bill Burkett, da Guarda Nacional no Texas, visto num canal de televisão falando de George W. Bush e da intenção de alguns de queimarem documentos relacionados com o então soldado-aviador mais tarde presidente. Mapes contatou Burkett, que lhe confidenciou ter documentos do coronel Jerry Killian, sob cujas ordens servira George W.Bush, em 1970, confirmando os rumores contra o então presidente. De posse desses documentos, cópias sem originais (que teriam sido queimados), Mapes obteve por telefone a confirmação de que o texto correspondia ao pensamento de Killian quanto a W.Bush, da parte de um general do mesmo comando, no qual estivera W. Bush.

A controvérsia sobre as provas

Mary Mapes com base nessa confirmação, divulgou a reportagem, mas foi contraditada, no dia seguinte, pois as provas não tinham sido datilografadas em máquina de escrever mas seriam documentos digitados, em computador, num processador de textos Word, ainda inexistente em 1970. Embora alguém pudesse ter copiado os documentos originais num computador, isso nunca foi provado e a dúvida aumentou quando Bill Burkett confessou ter mentido quanto à origem dos documentos. Quando o Killian se recusou a repetir ter confirmado a autenticidade do documento, Mary Mapes se viu sem elementos de prova, foi alvo de campanha de difamação e Dan Rather viu-se obrigado a se desculpar ao vivo por falta de provas. Nessa altura, a questão George W. Bush e o Vietnã tinha se tornado secundária, o escândalo era Mary Mapes e o programa 60 Minutos da CBS.

O filme mostra os entraves que foram surgindo para Mapes conseguir a autenticação dos documentos após a transmissão da reportagem, a repercussão dos blogs republicanos nas redes sociais, o recuo de um oficial depois de ter confirmado corresponderem os documentos ao pensamento de Killian sobre Bush, a evidente pressão criada sobre a CBS, repassada rapidamente sobre Mary Mapes, utilizando-se mesmo sua vida pessoal e suas relações com um pai alcoólatra e violento, e Dan Rather. Embora o filme não mostre, Mary Mapes já havia criado inimigos suficientes no clã de Bush e nos republicanos com sua reportagem reveladora sobre Abu Ghraib.

No seu livro “Verdade e Dever: a Imprensa, o Presidente e o Privilégio do Poder”, publicado no ano seguinte à sua demissão e no qual se baseou o filme “Truth”, Mary Mapes analisa todas as circunstâncias que envolveram a realização da reportagem mostrando como Bush foi protegido e transferido para a reserva em lugar de ir ao Vietnã. Numa entrevista, depois da apresentação do filme no Festival de Roma, Mary Mapes comparou as redes de televisão com grandes empresas  voltadas para o lucro e criticou a existência de seis corporações englobando as redes nacionais de televisão nos EUA, restringindo-se assim o exercício da liberdade de informação.

A demissão da jornalista Mary Mapes, obrigada a se redirecionar para a imprensa escrita regional, por não conseguir mais emprego na televisão nacional, é igual a de tantas outras histórias de jornalistas [1]. A liberdade de expressão é garantida mas não se deve esperar heroismo da parte dos diretores da meios de comunicação. No confronto com o poder político ou com a perda de publicidade, o jornal, televisão ou rádio prefere geralmente ceder.

Cena do Filme The Truth - Crédito Divulgação

Cena do Filme The Truth – Crédito Divulgação

Em alguns países europeus, como a França e a Suíça, existem canais de televisão estatais, nos quais conselhos junto à direção garantem uma certa objetividade não governamental informativa e dificultam demissões de ordem simplesmente política. O jornalista demitido geralmente não entra num index que o impeça de trabalhar em outro órgão da mídia, como ocorre em países totalitários, e, no caso de Mary Mapes, podem escrever sua revolta e com um pouco de sorte até ser tema de um filme.

Os jornais têm suas tendências políticas, há uma certa diversidade e os leitores sabem disso ao comprar e escolher seu exemplar. O modelo ocidental de imprensa mostra muitas lacunas mas, geralmente, não há subtração das principais informações como ocorre nos países de partido único ou de imprensa controlada. Entretanto, cada vez mais os grupos de imprensa e televisão se reduzem, colocando nas mãos de alguns grupos a formação da opinião dos leitores. No livro 1984, de George Orwell, com extraordinária visão futura, os jornais eram periodicamente reescritos, refazendo a história. Nos nossos dias de imprensa digitalizada, o pesadelo de Orwell, o acesso aos arquivos para modificá-los se tornou possível a um regime autoritário.

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Rui Martins é jornalista e escritor. Mora na Suiça

[1] Ao escrever sobre a colega Mary Mapes, me lembrei, de repente, de mim mesmo. Tive outras demissões na época da ditadura, como do Estadão e da Última Hora, porém, a demissão da CBN foi ligada diretamente ao exercício da profissão. Era ano eleitoral, a Suíça denunciara as contas secretas do candidato a governador Paulo Maluf e eu insistia em divulgar a existência de suas contas suíças e até o número do processo penal instaurado contra ele pela Polícia Federal suíça. Não houve erro de informação mas informação inoportuna. A demissão veio por telefone. Acabei também escrevendo um livro, editado pela Geração Editorial, “Dinheiro sujo da corrupção” (2005). Só não deu filme. Ironia: vez ou outra entro na CBN pela Rádio França Internacional.