Saturday, 16 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Um salto no escuro

Cada pessoa tem o sagrado direito de gostar ou não da Veja; tem também o sagrado direito de não comprá-la nem assiná-la, não acreditar nas matérias que publica, opor-se às suas posições, falar mal dela. Cada pessoa tem o sagrado direito de gostar ou não da Rede Globo, de vê-la ou não, de acionar o controle remoto, de desligar a TV, de falar mal das novelas e dos telejornais, de opor-se às suas posições, de dizer que boas mesmos são as emissoras da Rede Traço, a TV Cultura e a TV Brasil.

Mas tudo tem limite: abster-se da Folha de S.Paulo, de O Globo, de O Estado de S.Paulo, da Rede Record, da Bandnews, seja lá de que veículo for, não significa lutar para que seja silenciado. Não concordar é uma coisa, não querer que fatos e opiniões sejam ditos ou mostrados é outra – Voltaire, aliás, tem uma citação ótima a esse respeito. A campanha que vem sendo movida contra meios de comunicação dos quais há grupos que discordam visa menos contrariá-los e combatê-los do que silenciá-los.

Por que tanta raiva contra Veja e seu redator-chefe Policarpo Junior? No caso, Policarpo é acusado de atuar como agente do empresário zoológico Carlinhos Cachoeira, por ter dele recebido pautas e sugestões de matérias. Mas, se Policarpo Junior procurava informações sobre o submundo, deveria procurá-las em que lugar: com o bicheiro ou em algum convento de freiras reclusas?

O jornalista Paolo Mieli, especialista italiano em liberdade de imprensa, tem uma frase definitiva: “Toda fonte é legítima na busca pela verdade”. Vai mais longe: não cabe à imprensa distinguir entre as fontes, desde que não esteja a seu serviço. “Qualquer fonte é legítima”, disse ao Portal Imprensa. “Um jornalista não deve se impor obstáculos na busca por informação, como discriminar se alguém é um mafioso, criminoso ou nazista. Obviamente, isso é válido desde que receba da fonte uma notícia, algo que ontem não se conhecia e hoje você passa a conhecer. É óbvio, também, que a fonte dirá o que convém a ela. Nosso trabalho é encontrar algo a mais.”

Há alguns anos, uma excelente reportagem do grande Ewaldo Dantas Ferreira revelou muita coisa sobre a colaboração de franceses à polícia nazista das tropas alemãs de ocupação. A reportagem foi transcrita em diversos jornais do mundo inteiro, inclusive a França; e virou livro, O Depoimento. Qual foi a principal fonte de Ewaldo? Um criminoso de guerra condenado, um nazista que há dezenas de anos se ocultava na América Latina para fugir ao cumprimento da pena.

Outro esplêndido livro, Autópsia do Medo, a grande biografia do sinistro delegado Sérgio Paranhos Fleury, exigiu que Percival de Souza tivesse contatos com gente nada recomendável. E Eu, Cabo Anselmo, o livro em que o agente duplo Anselmo José dos Santos contava coisas terríveis – como o dia em que entregou à polícia uma reunião na qual estava sua esposa grávida, sabendo que todos os que lá estavam seriam mortos – só foi possível porque Percival entrou em contato com a mais suja das fontes, um traidor cúmplice de muitas mortes. Ewaldo e Percival fizeram seu trabalho com brilho, revelaram pontos obscuros e importantes da História, e ninguém poderá jamais acusá-los de conduta inadequada.

Este colunista nunca trabalhou na Veja, nem na Editora Abril, e seu relacionamento com Policarpo Junior se limita a cumprimentos em raros encontros, em ocasiões formais. Mas o que está em discussão não é o relacionamento profissional ou pessoal: é o limite da busca da informação. No fundo, é uma questão de honestidade e ética. Se algum jornalista utiliza uma inside information para proveito pessoal, pode tê-la obtido até com o Dalai Lama, que isso não o absolve. Se recebe uma informação que leve a uma boa matéria, pode tê-la obtido até com criminosos desprezíveis, que isso não estará errado.

 

A fonte oficial

A luta partidária para demonizar os adversários está tão grande que contaminou o noticiário. Uma reportagem da Agência Brasil – que, sendo do governo, é reproduzida sem maiores cuidados em pequenos jornais, blogs, portais, é lida em emissoras de rádio, é divulgada em tevês locais – publicou informações incorretas a respeito de Policarpo Junior. O senador Fernando Collor, do PTB de Alagoas, ex-presidente da República, apresentou requerimento solicitando declarações do jornalista à CPI dos Bingos, de 2006. A Agência Brasil publicou a notícia do requerimento transcrevendo-o, sem analisá-la: “O requerimento para resgatar informações prestadas pelo jornalista Policarpo Junior (…) à CPI dos Bingos (…)”. Só que Policarpo Junior não prestou depoimento algum à CPI do Fim do Mundo (apelido que foi dado à CPI dos Bingos e que quase se transformou em seu nome oficial).

Diante dos protestos pela evidente falsidade da notícia, a Agência Brasil corrigiu o erro, doze horas depois – cometendo um erro ainda maior: disse que as declarações de Policarpo Junior tinham sido feitas à CPI da Loterj, na Assembleia do Rio, e ao Conselho de Ética da Câmara, e atribuiu as informações à assessoria de Fernando Collor. Um telefonema para o alvo dos ataques? Não, nada disso: bastou uma declaração da assessoria de Fernando Collor. E Fernando Collor, desde o início da atual CPI, deixou claro que seu alvo era Veja. Talvez ainda esteja irritado com a revista pela entrevista com seu irmão Pedro, que iniciou o processo que culminaria com seu impeachment. A Agência Brasil se comportou como a Velhinha de Taubaté, a imortal criação de Luis Fernando Verissimo, a última pessoa do país que acreditava no governo. Só que, no caso, a Velhinha de Taubaté acreditava em Fernando Collor.

O caso é que Policarpo Junior não esteve na CPI da Loterj nem na Comissão de Ética da Câmara. E, portanto, não falou nada. Dois erros seguidos, iguais, ambos demonizando o adversário do momento. E o consumidor de informação? Ora, quem está preocupado com ele, se o importante é xingar o adversário?

 

A história se repete

De três a quatro vezes por semana, há uns três ou quatro anos, recebo e-mails contando a grande novidade: por ter lido sei lá qual notícia, Alexandre Garcia foi demitido da Globo. É curiosíssimo: o cavalheiro liga a Globo, vê Alexandre Garcia, liga o rádio, ouve Alexandre Garcia, e passa um e-mail contando que ele foi demitido.

O caso Celso Daniel é semelhante: seu irmão Bruno está ameaçado de morte e por isso vive exilado na Europa, contam os meios de comunicação. Mas passa longas temporadas no Brasil, dá entrevistas, vai à TV, assiste a julgamentos – e quem o ameaça de morte, estará de férias neste período?

Mas não vale notícia que contrarie a lenda urbana. Ninguém dirá, por exemplo, que Bruno passou mais de dez anos sem falar com o irmão. Ninguém dirá que seu outro irmão, João Francisco Daniel, vive na Bahia e não no exílio. Agora, quando alguns acusados do assassínio de Celso Daniel foram julgados, saiu de novo na imprensa que João Francisco acusou José Dirceu de estar envolvido em desvio de dinheiro da prefeitura de Santo André, SP. A acusação existiu – mas, processado por Dirceu, João Francisco se retratou.

Talvez os meios de comunicação não tenham tido tempo de tomar conhecimento da retratação. João Francisco retratou-se em 2006. Seis anos não chega a ser muito tempo para que uma notícia chegue às redações, não é mesmo?

 

Cumprindo promessas

O governador do Mato Grosso do Sul, André Puccinelli, do PMDB, assumiu um difícil compromisso de campanha: disse que, se o ex-governador Zeca do PT, seu principal adversário no estado, se eleger vereador em Campo Grande com a votação recorde de 30 mil votos, “vai cortar o saco”.

É governador de um estado importante. E esta frase entra no jornal.

 

Volta por cima

O Manual do Repórter de Polícia, de Marco Zanfra, que era publicado no portal Comunique-se e desapareceu sem qualquer explicação, está de volta, agora como blog. O curioso é que um portal destinado à comunicação não comunicou, quando foi indagado não respondeu, e bola pra frente que logo teremos Copa.

 

Palavras ao vento

Há palavras cujo destino jornalístico é cruel. “Bagatela”, por exemplo, é uma quantia insignificante. De tanto vê-la usada em sentido irônico, como “pagou pelo apartamento a bagatela de 300 milhões de reais”, muita gente passou a acreditar que bagatela significa uma grande quantia. Outra palavra é “craque”, que costumava designar um jogador bem acima da média. Com a banalização, “craque” virou sinônimo de jogador.

Há outras. Uma notícia, outro dia, trazia como estrela a palavra “parcimônia”.

Por exemplo: “Reticente em relação á criação da CPI, o PMDB participa da comissão com parcimônia”. Com economia? Não, claro que não, que o PMDB não é disso: mas aí ainda se poderia enxergar algum sentido, de economizar no entusiasmo e no trabalho. Mas a frase continua: “Apesar do estardalhaço em torno da CPI do Cachoeira, integrantes da comissão veem com parcimônia os trabalhos do grupo”.

Qual o sentido? Talvez “desconfiança”, talvez “restrições” – enfim, alguma coisa. E, pelo jeito, coisa negativa. Se o pessoal estivesse entusiasmado, que é que se diria? Talvez “(…) veem com esbanjamento os trabalhos do grupo”.

 

Como…

De um grande portal noticioso:

** “Brasil tem seu primeiro jogador na liga americana professional de beisebol”. O jogador, de Mogi das Cruzes, “jogou no colégio e foi draftado pelos Blue Jays em 2009”.

Como se exige hoje em dia, muito professional de jornalismo sabe inglês como poucos. O que não sabe é português.

 

…é…

De um grande jornal impresso, com pretensões nacionais:

** “Sem-teto é preso de propósito para comer”.

Puxa! Foi preso de propósito, ao contrário dos que são presos por acaso! E essa história de dizer que ele foi preso para comer acontece muito, mas se usassem a expressão “alimentar-se” teriam uma frase bem mais precisa.

 

…mesmo?

De um importante portal noticioso:

** “Após raio em avião, Hollande é recebido com honras na Alemanha”

Mas que raios tem o raio a ver com o cerimonial de uma visita de Estado?

 

Mundo, mundo

Foi um sucesso: a bela Coleen, esposa do artilheiro inglês Rooney, com um minúsculo biquíni, apareceu na piscina de um hotel de Las Vegas. Os fotógrafos se assanharam: bonita, queimada de sol, seria uma festa para os paparazzi.

Não foi: Coleen está acostumada a posar, divertiu-se com a agitação dos fotógrafos, sorriu para eles e continuou a tomar seu solzinho, sem se preocupar com as câmeras e os cliques.

Pois é: e aqui, nos portais de fofocas, o pessoal insiste em acreditar que uma estrela “distraiu-se e mostrou que estava sem calcinha”, ou “foi surpreendida quando o vestido escorregou e o seio apareceu”. Pior: ainda dão títulos e legendas do tipo “mostrou mais do que devia”. Talvez um dia percebam, né?

 

E eu com isso?

Há notícias que, embora sejam frufru puro, não podem deixar de ser analisadas. Por exemplo, o diretor do filme Quando eu era vivo, com Sandy, diz que a obra é diferente de tudo o que ela fez. Claro que é diferente – entre outros motivos, porque se não fosse diferente seria uma reprise.

Ou o caso do turista que tentou deixar o hotel sem pagar a conta de R$ 6 mil em caipirinhas. Nessa história, quem é o ladrão?

Mas, fora essas, há muitas notícias ótimas, sem as quais certamente não conseguiríamos dormir à noite.

** “‘Meu sonho é ter o bumbum da Sabrina Sato’, diz Thaila”

** “Pintura feita com sangue de Amy Winehouse é vendida por US$ 56 mil”

** “Romário revela que já fez faculdade de Moda”

** “Touro chifra francês em arena na Espanha”

** “Mariana Ximenes fala de cenas de sexo com Leandra Leal”

** “Cãozinho cai do céu após ser capturado por gavião e sobrevive”

** “Rapper Kanye West vai apresentar novo curta-metragem na França”

** “Luana Piovani deixa bebê em casa e faz caminhada na orla no Rio”

** “Justin Bieber faz ensaio fotográfico sem camisa”

** “Em Itapetininga, homem surdo aguarda há dois anos para reencontrar parentes”

 

O grande título

Uma disputa complicada: há um título que precisa ser decifrado, outro que levanta uma interessantíssima questão e, finalmente, um que nos leva a terríveis (e falsas) conclusões. Comecemos pelo enigmático:

** “Porto Alegre: senadora pede investigação de suposto grampo em Manuela 11”

Manuela deve ser Manuela d’Ávila, candidata do PCdoB à prefeitura da capital gaúcha. A senadora é Ana Amélia, do PP, que apoia Manuela. E o 11? Não, não é o número do PCdoB: o número do PCdoB é 70. O 11 é o número do PP, que é o partido de Ana Amélia, mas não é o de Manuela. Quem tiver a resposta favor escrever para esta coluna.

Agora, o título que levanta a dúvida:

** “Avião cai antes de aterrissar e mata as 127 pessoas a bordo no Paquistão”

A dúvida: alguém conhece algum caso de avião que tenha caído depois de aterrissar?

E agora o melhor de todos – e o que nos leva a terríveis conclusões:

** “Crimes: em 5 meses, polícia do Rio recebe mais de 17 mil queixas contra crianças”

Serão as crianças do Rio tão más quanto o título deixa entrever?

Fique sossegado: ruim é a elaboração do título, não as crianças. De acordo com aprofundadas pesquisas realizadas por esta coluna, são queixas de crimes contra crianças e adolescentes. Uma pequena confusão entre criminosos e vítimas.

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[Carlos Brickmann é jornalista e diretor da Brickmann&Associados]