Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os poderosos rotativos

Aquele restaurante que há tanto tempo o atende bem pode perder o cliente com um ou dois dias de maus serviços. Aquela marca de automóvel com a qual o cliente se acostumou pode perdê-lo ao lançar um modelo inadequado, de manutenção cara e chegado a defeitos mecânicos. Os meios de comunicação duvidam, mas enfrentam o mesmo problema: consolidam-se ao longo dos anos, mas em muito menos tempo o que parecia sólido se desmancha no ar.

Este colunista tem lido muita bobagem sobre a decadência dos veículos em papel. Sim, o papel deve ter uma importância cada vez menor nos veículos escritos. Não tem sentido enviar informações do outro lado do mundo em poucos segundos e depois levar um tempão para processá-las, imprimi-las em papel caríssimo e pesado, enfiá-las em caminhões e fazê-las enfrentar congestionamentos de trânsito. Mas não é isso que liquefaz um meio de comunicação. O Correio do Povo, símbolo gaúcho de jornalismo, perdeu importância muito antes da era virtual, depois de ter sido o jornal que ditava posições. O mesmo aconteceu com a Life, O Cruzeiro, Manchete. Perderam o elã. Esqueceram a fórmula de manter contato com seu público. O Jornal da Tarde não morreu por uma crise de papel: o que o matou foi a crise de conteúdo.

Antes do papel, a Bíblia foi escrita em pergaminho e papiro. Mudou o suporte físico, a Bíblia continuou e ganhou, com custos menores, a possibilidade de expandir-se a multidões de novos leitores. E continuará, sem papel, a viver na era eletrônica, talvez aproveitando os custos ainda mais reduzidos para difundir-se maciçamente, superando tudo o que já obteve antes. Os jornais e revistas mudarão, majoritariamente, para as telas, e continuarão existindo, informando, influindo.

O que definirá sua influência na sociedade não é o papel, a tela ou sabe-se lá que suporte venha a existir, mas sua capacidade de informar com rapidez e precisão, a credibilidade de que desfrutar, a competência de suas análises, a presença de colaboradores que acrescentem, com talento, novas vertentes de percepção dos fatos, tudo combinado à capacidade de buscar no mercado os recursos que mantenham toda essa estrutura e a façam dar lucro.

Difícil? Sim, mas não impossível. Há algumas centenas de anos, em Mogúncia, na Alemanha, Gutenberg enfrentou o mesmo desafio, e deu certo.

 

O presidente-escritor

Certamente este colunista falhou, ao não encontrar uma das notícias mais saborosas relacionadas à vitória de Barack Obama nas eleições presidenciais americanas. Não, não é possível que tenha passado sem ser percebida por todos os meios de comunicação, que destinaram bom tempo e investimento à cobertura do duelo entre Obama e Mitt Romney.

O fato é que, com a reeleição de Obama, um antigo projeto foi retomado: o de um livro conjunto de dois amigos, ambos ganhadores do Prêmio Nobel. O Nobel da Paz, Barack Obama, americano, e o Nobel de Literatura, Elie Wiesel, israelense. Tema? Um pouco nebuloso: “Um livro de dois amigos”, diz Wiesel. Talvez até seja este o título.

Ambos se conheceram há muitos anos, quando Obama foi aluno de Wiesel no California Occidental College. Em 2009, reencontraram-se numa visita ao campo de concentração nazista de Buchenwald, na Alemanha – Obama querendo conhecer o passado em profundidade, Wiesel relembrando os tempos em que lá passou. Wiesel era prisioneiro em Auschwitz; diante da iminência da conquista da região pelos Aliados que combatiam os nazistas, os presos foram obrigados a ir a pé para Buchenwald, uma caminhada que se tornou famosa com o nome de Marcha da Morte.

No encontro, naquele local tão improvável, Obama disse a Wiesel que guardava suas palestras do tempo de escola. Ficaram amigos e, desde então, encontram-se periodicamente para jantar e conversar. “Conversamos sobre filosofia, contemplação, pensamento, mas nunca sobre política”, diz Wiesel. Dessas conversas surgiu a ideia do livro que está sendo preparado a quatro mãos. A obra caminha de acordo com a disponibilidade de tempo. Um dia, sabe-se lá quando, o Livro de Dois Amigos será publicado.

 

Pois é

Alguém sabe responder por que a Globo é há tantos anos líder da TV brasileira? A resposta é simples: porque merece. Muitas concorrentes não têm recursos suficientes para investir e ganhar capacidade de enfrentá-la, outras até poderiam crescer, mas não se interessam em disputar a liderança, outras se interessam e têm recursos, mas problemas internos, ou falta de foco, as impedem de ganhar musculatura, ganhar know-how próprio e desenvolver-se o necessário. E há quem nem se preocupe com isso: desde que o equipamento seja moderno e as imagens saiam boas, não importa o que seja transmitido

Um bom exemplo aconteceu outro dia, numa rede de TV muitíssimo bem equipada, que teria tudo para disputar a liderança. Num determinado programa de entrevistas, a convidada, famosíssima, contou que certo dia seu marido teve dores muito fortes e teve de ser levado ao hospital. Enfrentou uma cirurgia de quatro horas e os médicos lhe disseram que, não tivesse sido o socorro tão rápido, ele teria morrido. A entrevistada, emocionadíssima, chorou muito.

E, ao pé da tela, anunciando o que viria a seguir no programa, sob a imagem das lágrimas da entrevistada rolando sobre seu belo rosto, aquelas mensagens brancas sobre tirinhas pretas: “(Entrevistadora e entrevistada) prometem um selinho no final do programa”. “Aguardem as imagens do quarto da (entrevistadora)”.

Será que ninguém, nem mesmo o diretor do programa, foi capaz de ver o que acontecia e ter sensibilidade para bloquear as frases bobas que circulavam por baixo das emocionantes imagens do drama da moça?

 

Volta por cima

Foi só um susto: o jornalista Audálio Dantas, autor de As duas guerras de Vlado Herzog, passou uma temporada no hospital mas já está de volta, lançando o livro em todo o país. Já o lançou no Rio e em Porto Alegre; na terça-feira (13/11) o lançamento é em São Paulo, a partir das 19h, no Sindicato dos Jornalistas, Rua Rego Freitas, 530, sobreloja. Três lançamentos em seguida, um excelente sinal de que Audálio volta com a pilha toda.

É importante lembrar que, quando Vladimir Herzog foi assassinado pela ditadura militar, Audálio Dantas era presidente do Sindicato dos Jornalistas e foi um dos maiores responsáveis pelos protestos que acabaram levando o governo federal a enfrentar e derrotar os torturadores que agiam em São Paulo. Audálio conhece os fatos e sabe narrá-los com talento e competência.

 

Condenação pesada

Durante o governo de Fernando Henrique, o secretário-geral da Presidência, Eduardo Jorge, foi a vítima preferencial da guerra política: dois procuradores o acusaram de tudo o que puderam, e o jornalismo preguiçoso fez o resto, transcrevendo as acusações dos procuradores como se fossem fatos verdadeiros e verificados. Não eram.

Terminado o governo Fernando Henrique, Lula assumiu a Presidência da República e os dois procuradores que faziam denúncias diárias misteriosamente silenciaram. Sumiram, evaporaram-se.

Mas as denúncias tinham sido publicadas e causado efeito sobre a reputação da vítima. Eduardo Jorge dedicou vários anos a reunir provas e a processar quem o tinha atacado. E acaba de obter uma vitória importante: a Editora Abril, condenada num desses processos, iniciado em 2003, terá de publicar a sentença contrária a ela e favorável a Eduardo Jorge em revista impressa e na internet. A decisão do Superior Tribunal de Justiça seguiu o voto do relator, ministro Villas Boas Cueva.

 

Quanto é 100%?

Na escola, os alunos aprendem que 100% é a quantidade toda: 100% da carga de um navio é a carga inteira, 100% da população é a população inteirinha, 100% de acertos equivale a erro zero. Nos meios de comunicação, é diferente: um grande jornal informa que, conforme avaliação da Justiça, uma empresa comprou um imóvel por preço “287% inferior” ao ofertado. Notável: se preço 100% inferior significa que o imóvel nada custará, “287% inferior” indica que o felizardo comprador ainda vai receber uma grana boa para ficar com o imóvel. Este colunista está indignado: esse tipo de negócio ninguém propõe a ele.

 

Flor do Lácio

Mas ninguém culpe apenas os jornalistas. Há anúncios fantásticos. Um deles, por exemplo, faz questão de incluir todo aquele blablablá sobre responsabilidade social que as empresas normalmente não exercitam, mas proclamam. Trecho do anúncio: “Este produto é produzido pela (…), uma empresa que funcionada alienada a responsabilidade social, com o objetivo de levar até você a melhor sensação que um ventilador pode oferecer”.

Difícil de entender, né? E fica mais difícil ainda se soubermos que o produto oferecido não é um ventilador. É um aparelho de ar condicionado.

 

Como…

De um grande jornal, página de Esportes:

** “O goleiro do Goiás, Iarlei (…)”

Iarlei é um bom jogador, que fez sucesso no Boca Juniors, no Internacional de Porto Alegre, no Corinthians, no Goiás. Suas participações em duelos continentais o credenciaram a receber o apelido de “Mr. Libertadores”. E tem, sempre teve, grande afinidade com o gol – mas não para defendê-lo, e sim para fazê-lo. Iarlei não é goleiro, mas meia-atacante.

 

…é…

De um jornal regional:

** “Sete universidades expõe pesquisas (…)”

E pensar que houve época em que a imprensa cuidava da concordância!

 

…mesmo?

Da Internet, que nunca nos falha:

** “Idoso fica gravemente ferido após ser atingido por tiros”

Há várias interpretações possíveis. Por exemplo, se o cavalheiro fosse jovem, não ficaria gravemente ferido após ser atingido por tiros?

 

Reafirmando

Do portal informativo de um grande jornal, a respeito de vendas de veículos:

** “O volume representa, que representa um avanço de 18,6% na comparação com setembro, representa o melhor desempenho para o mês na história do setor”.

 

E eu com isso?

Pois, já que o texto acima insiste em tanta representação, vamos para assuntos que representam os sonhos do dia a dia de tanta gente.

** “Aos 52, Sean Penn passeia com braços musculosos à mostra”

** “Adoro andar de ônibus à noite em Salvador, revela Ivete Sangalo”

** “Lady Gaga vai a churrascaria carioca”

** “Giselle Batista conhece museu em Manaus”

** “Colin Farrell aparece barbudo e cabeludo”

** “Famosos curtem desfiles no Rio”

** “Ao falar do namorado, Heidi Klum se declara”

** “Ainda mais loira, Adriane Galisteu muda visual e aposta em franjinha”

** “De fenda, Carol Nakamura posa com fãs em aeroporto”

** “Ambrosio se diverte em festa pós-desfile”

** “Suri Cruise proporciona caras engraçada”

Traduzindo em português: como toda criança, a filha de Nicole Kidman e Tom Cruise faz caretas.

 

O grande título

A semana é pródiga em títulos que eventualmente, desde que bem explicados, podem até fazer sentido. Digamos,

** “Clientes da TNG vetam virgem em desfile no Fashion Rio”

Preconceito contra virgens? Não, apenas contra uma: a jovem catarinense que leiloou sua virgindade. E que é que os clientes da TNG têm com isso?

A propósito, já que falamos em ter algo com isso, um título magnífico:

** “Agredido com barra de ferro por adversário, atleta luta contra o câncer”

A agressão provocou traumatismos que podem ter levado ao câncer? Não: é apenas uma coincidência. O atleta, jogador de futebol, está com câncer e ainda por cima foi agredido pelo adversário com uma barra de ferro. A parte mais curiosa da notícia não aparece: como é que arrumaram uma barra de ferro no gramado?

E há um título que, no gênero, é impecável:

** “Gatos fazem perseguição implacável a laser em vídeo em primeira pessoa”

Se não faz sentido, mereceria fazê-lo.

***

[Carlos Brickmann é jornalista, diretor da Brickmann&Associados]